Contemporaneidade e jornalismo cultural: estudo comparativo das críticas literárias da revista brasileira Cult e da revista francesa Les Inrockuptibles

Contemporaneidade e jornalismo cultural: estudo comparativo das críticas literárias da revista brasileira Cult e da revista francesa Les Inrockuptibles

 

Apresentado inicialmente como tese de doutorado, esse estudo da jornalista Patrícia Orlando, após acompanhar os percursos de duas revistas: a brasileira Cult e a francesa Les Inrocks ( abreviação de Les Inrockuptibles) com a análise de algumas resenhas jornalísticas literárias, levanta algumas questões bem atuais:

1 – Existe uma nova forma de se ler a literatura? Pode um texto jornalístico ser considerado literário?

2 – Como a literatura está sendo criticada, definida e recriada pela realidade?

3 – A dinâmica da alta cultura e cultura popular: o que são o capital simbólico e o fim das referências?

4 – Qual é o papel da literatura no mundo contemporâneo?

1 – A resposta à primeira parte da enquete inclui uma pergunta muitas vezes repetida: em que medida um texto jornalístico (pacto ético) pode ser considerado literatura (pacto estético)?

Como texto explicativo Patrícia escolheu a resenha “Um herói discreto” de Antonio Candido – sobre o volume Cartas de um piloto de caça (1945 e reeditado em 2012), que reúne as cartas do piloto de caça brasileiro Fernando Corrêa da Rocha, herói da segunda guerra –, publicada na revista cultural Cult n.168, maio 2012.

Figura 1 – Capa da Revista Cult, ed. 168.

Observa-se que a resenha crítica de Antonio Candido não tem veleidades literárias (não é ficção, nem utiliza procedimentos da retórica, tipo ironia, paródia, símbolo etc.) mas se desenvolve através de uma série de vívidas reminiscências do autor sobre seu “calouro do Largo de São Francisco” onde – nota Patrícia – ele mesmo, ao lembrá-lo, se coloca inicialmente no centro da narrativa (sujeito). Depois, quando passa a falar do protagonista (objeto) a vida privada dele sobressai mais que os feitos como aviador-herói. A vida comum de ambos é o ponto central da análise de Antonio Candido.

Onde está a “estetização do mundo”, própria à literatura, nesses textos jornalísticos?

Minha resposta: no estilo do crítico que permeia o texto e une sujeito e objeto, através da linguagem. O estilo, mais do que a ação da trama é ao mesmo tempo, o que atrai o leitor (no dizer de Enzo Biagi, um dos maiores jornalistas italianos, o primeiro requisito de um texto jornalístico é que ele seja lido), e é o que torna o texto jornalístico um texto literário. (O primeiro requisito para que um texto seja literário é que ele seja estilizado, dizia o crítico Leo Gilson Ribeiro).

Vejamos a conclusão de Patrícia, dentro da perspectiva sócio-histórica que ela adotou.

“A linguagem de Candido nesse texto crítico, portanto, não pode ser considerada inocente. Ela é matizada de exaltação à figura de Rocha, por meio de uma caracterização pautada na vida pessoal tanto de Rocha, quanto de Candido. Essa sensação de “estado de pureza” é, sobretudo, fruto da relação entre a “qualidade” da obra e a biografia subjetiva do autor. A sua experiência individual estaria, assim, a guiar a crítica que adjetiva o autor e pode ser considerada uma espécie de cimento social.”

2- No texto seguinte da revista Cult (edição 146 – fevereiro 2020) “Platero e eu” sobre o escritor espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958 – prêmio Nobel de Literatura 1956), o que salienta Margareth dos Santos, sua resenhista é, inicialmente, a biografia, dando um peso importante aos aspectos empíricos da vida e da obra do autor e assim criando um fator de interesse para o público leitor que se sente atraído pelos escorços de realidade que encontra no texto.

Figura 2 – Capa da Revista Cult, ed. 146.

Nesses escorços entra também a informação da outorga de prêmio. Veja-se o que diz G. Lipovétski em A Estetização do Mundo: viver na era do capitalismo artista (2015): “A forma de pensar em um mundo estetizado é também identificar relações baseadas em reconhecimento e gratificações incessantes. É o caminhar de mãos dadas entre o mundo do dinheiro e o da criação. Prêmio Nobel significa, nessa linha de raciocínio, boas vendas de livros.”

A realidade entra decididamente no fazer literário.

Mas, o que determina o valor literário da resenha, mesmo no mundo contemporâneo “em que os dados parecem ser mais importantes que o conteúdo em si” é, novamente e sempre, o estilo da autora que conversa sub-repticiamente com a obra numa interação dialógica.

Eis como o caracteriza Patrícia.

“Esse ‘fino exercício de dissecação de palavras e imagens’, para usar as palavras da autora, parece ser uma escolha estilística consciente: ao contrário de banalizar, a crítica, nesse caso, pretende iluminar, tecer caminhos, mostrar espaços de apreensão da obra e seu autor.” Esse exercício é realizado tanto na crítica de Santos para a Cult, quanto na de Léonard Billot para a Les Inrocks sobre o livro 300 millions, de Blake Butler, janeiro de 2019, o contraposto francês a esta resenha.

3 – Dando início à segunda parte que trata de analisar como a literatura está sendo recriada pela realidade, o texto da Cult (edição 183- setembro 2013) selecionado é “Maestro do Cantão”, resenha da jornalista Mariana Marinho, que será desbravada por Patrícia.

Figura 3 – Capa da Revista Cult, ed. 183.

Trata-se, essencialmente, de uma entrevista que Mariana fez a Toni C. sobre a primeira biografia de um rapper brasileiro (“Sabota”, ou Mauro Mateus dos Santos) que Toni C. escreveu em 2003: Sabotage – um bom lugar.

A resenha é vista por Patrícia como documento sócio-histórico, e não exótico, como o assunto poderia levar a esperar, logo, a crítica não pertence à estética “colonialista”, mas começa dando informações sobre os fatos em si.

Sabe-se que Cantão faz parte da Favela do Aeroporto (no bairro do Brooklin em São Paulo), e que Sabotage foi morto por quatro tiros desferidos no bairro da Saúde por questões supostamente ligadas ao tráfico. Sabe-se que ele tinha mulher e que Babenco o incluiu no filme Carandiru, onde fez o papel de Fuinha e que ainda participou de outro filme, O invasor, de Beto Brant, interpretando a si próprio e contribuindo com cinco faixas para a trilha sonora.

Essas e outras informações de sua biografia constituem um elemento muito importante na literatura hodierna, elemento esse que é quase uma lei:

A realidade aproxima o objeto ao leitor e vivifica seu interesse.

A segunda lei que Patrícia realça é mais antiga, e seu promulgador é nada menos que Lev Tolstói. Quando a jornalista repara que o texto de Toni C. tem a mesma cadência do rap, Patrícia o faz incorrer no fenômeno da Contaminação: Um texto é boa literatura quando seu estilo contamina escritor e fruidor.

Aos poucos vamos descobrindo a ambiência de Toni C., o porta-voz de Sabotage ou, nos termos de Derrida citado por Patrícia: “ tudo o que paira sobre quem escreve”, ou seja O Espectro. Espectro esse que sempre existiu, em termos de literatura, mas que renasceu por ter sido usado e abusado por Annie Ernaux que lhe aplicou outro nome: Autobiografia impessoal

Justamente, são todos procedimentos importantes para cativar o leitor, nessa nossa época de mídias que o bombardeiam sem interrupção.

O texto francês escolhido para fazer par com este é “Champ de l’amour”.Enquanto a resenha francesa discorre sobre a filosofia do amor contemporâneo, a brasileira versa sobre a história do rapper paulistano Sabotage: uma abordagem quase filosófica versus uma resenha sócio-cultural.

4 – No quarto texto escolhido (edição 158 da Cult – junho, 2011) a resenha analisada por Patrícia é “Biografia do cisne negro” de autoria de Paulo Schiller.

Figura 4 – Capa da Revista Cult, ed. 158.

O cisne seria a “A pianista” (Erika Kohut), obra (autoficcional?) de Elfride Jelinek, prêmio Nobel de literatura 2004, que não foi receber o prêmio por ser afeita de fobia social. Casada, sem filhos, alterna com o marido a estada ora em Viena, ora em Munique. Filha de pai judeu tcheko laureado em Química e de mãe romena, despótica, paranoica e carola que foi seu algoz, visto vigiá-la em todos seus passos e proibir-lhe qualquer tipo de namoro.

É essa ambiência que Jelinek descreve em sua obra, onde a protagonista, pianista, obviamente, transgride a vigilância da mãe e, aos 36 anos, tem um tórrido romance com um seu aluno bem mais jovem.

A autora, diz Schiller, aproxima-se pelas bordas ao centro, “levando o artesanato da linguagem ao limite, por meio de múltiplas vozes entrelaçadas, metáforas inusitadas, imprecisões reveladoras e paradoxos aparentes” e denunciando implacavelmente a hipocrisia da sociedade de seu país, “alienada em relação ao passado de colaboração com o nazismo”.

Há, no final da resenha, uma referência à tradução de Luís Kraus que “ preserva o ritmo, a musicalidade e a riqueza do emaranhado de dissonâncias que se atropelam no estilo vertiginoso e incomum da autora”.

Muito bem. Qual é a “lei” que para Patrícia é revelada nessa resenha?

Trata-se de uma outra modalidade da “contaminação” em que o” texto persegue o resenhista leitor como se a ele se fixasse”. É o Estranhamento, tão estudado e debatido pelos Formalistas russos e tão antigo quanto a Literatura.

A arte evoca um sentimento que implica um deslocamento da condição alienante da vida cotidiana e, atualizando seu efeito, conforme Leila Perrone-Moisés: cria uma nova realidade como subsídio à própria compreensão do real.

Quanto à tradução, é Pierre Bourdieau (1930-2002) sociólogo francês de grande recepção no Brasil, que fornece, via Patrícia, a visão da tradução como reescrita literária da obra e uma de suas leis mais importantes, sempre esquecida, mas que hoje volta à tona: As palavras que empregamos [na tradução] e –portanto – como denominamos o mundo, podem mudar a nossa visão sobre ele.

Na resenha francesa que faz pendant a esta “We can be heroes”, escrita por Nelly Kaprièlian, editora da seção “livros” da editora de Les Inrocks como uma entrevista (encontro) que cede a voz a Marie Darrieussecq sobre o próprio livro dela La Mer à l’ envers, há – repara Patrícia –, um diálogo entre uma burguesa francesa e um jovem migrante africano que realça a importância da dualidade, da fluidez cultural e da roteirização do real na nossa época ( a resenha data de 2019).

5 – Para a penúltima parte do estudo, “A dinâmica entre alta cultura e cultura popular”, Patrícia escolheu dois textos bem sintomáticos, sendo o primeiro o “Jantar de frases feitas”, uma crítica do professor e crítico Alcir Pécora ao livro de Cristóvão Tezza, Um erro emocional, na edição 152 da Revista Cult, novembro, 2010.

Figura 5 – Capa da Revista Cult, ed. 152.

Trata-se – escreve Pécora –, a seu modo, de um tour de force: “a tentativa de narrar, ao longo de um jantar entre um escritor mulato e uma leitora fervorosa, a memória afetiva das duas pessoas na iminência de um caso de amor. Os eventos são mínimos. O romance compõe-se dos devaneios de cada um deles, quase sem comunicação entre si”.

Mas, logo em seguida, após elencar as ações mínimas entre os dois:

“[O] escritor Donetti entra no apartamento de Beatriz, com uma garrafa de vinho e um manuscrito nas mãos, declarando que se apaixonou por ela (pág. 7); dez páginas depois, ele abre o vinho; na pág. 24, ela pede pizza; na 66, a pizza chega; quatro páginas depois, ela é aberta; mais cinco páginas, é cortada a primeira fatia; outras cinco páginas, uma segunda fatia; na pág. 86, Beatriz vai ao banheiro; na 105, propõe um chá, que o escritor aceita na 115, mas torna a pedir vinho na 139, o que a leva a se dirigir à despensa para busca ruma nova garrafa; na 144, a garrafa é trazida, e ele a abre; mais três, Beatriz dá o primeiro gole; na pág. 154, traz água; na 172, vai buscar outra garrafa ;aproveita que saiu da sala para “fazer xixi” cinco páginas depois; na 178, traz a garrafa; na 183, Donetti a serve, ao que ela, na página seguinte, propõe fazer café; na pág. 191, a última do livro, Beatriz verte a água no coador e Donetti estende a mão para tocá-la”

Lá vem o veredicto:

O contraste entre os dois planos é o que há de mais inovador no romance: um choque tão inverossímil e artificioso que lembra uma procedural play, isto é, uma rotina elocucional a priori, aplicada de modo indiferente ao conteúdo da obra. Isso poderia lhe dar um aspecto experimental interessante, mas infelizmente não é o que predomina nele. Afora esse mérito da composição, o romance perde-se na natureza estereotipada das lembranças, na estreiteza de suas referências, incompatíveis com os personagens de grande autor e de leitora refinada, para naufragar no tom filosofante, cujo sujeito é um “nós”sentencioso, generalista, que dissolve o drama pessoal numa cascata kitsch.

Vejamos o que tem a dizer Patrícia.

Em primeiro lugar é visível o tom “elevado” do estilo do crítico-professor. Não apenas os conceitos e a sintaxe são rebuscados, mas o uso oportuno de estrangeirismos confere mais um toque ao eruditismo da análise literária que acerta o alvo. (O título de sua análise já parece dizer tudo sobre o conteúdo do romance: “Jantar de frases feitas”).

Mas isso não significa que o tom “elevado” seja garantia de boa literatura, nem que o tom “baixo’ não possa sê-lo. (Baste ver, no exemplo que me ocorre de imediato, o entusiasmo de Boris Schnaiderman e Augusto de Campos pela arte do poeta Gioacchino Belli, escrita em tom baixo e… em baixo calão! Veja-se Tradução, ato desmedido de B. Schnaiderman, 2011.)

De fato, a questão do tom (seja ele, mesmo em prosa, alto ou baixo) é fundamental, tanto quanto a do léxico e do ritmo, para revelar se a obra pode ser considerada boa, literariamente falando. Tezza, no ver de Pécora, quase acertou com sua procedural play, isto é, uma rotina elocucional a priori, se fosse aplicada de modo indiferente ao conteúdo da obra, aliada à ironia, à paródia, ao distanciamento, etc., sem cair na enfiada de lugares-comuns e, – como reconhece Patrícia – “das frases de efeito – ou clichês – que impregnam o tecido literário”

Com efeito, diz Patrícia, “a fronteira entre o elevado e o pop torna-se tênue e permeável, redefinida constantemente pela própria atividade de crítica”.

6 – Resta ver a resenha a ser considerada, na edição 179 da revista Cult (março 2022) sobre o romancista uruguaio Mario Levrero (1940-2004), escrita pela argentina Paloma Vidal: “A máquina de pensar em Levrero”.

Figura 6 – Capa da Revista Cult, ed. 179.

Aqui não se trata de discutir variedades de tom, mas de verificar como nos escritos de Levrero são propostas indagações e questionamentos (inclusive sobre si próprio) que vão além do texto, onde – no dizer de Barthes, “se casam e se contestam escritas variadas” e, no dizer de Vidal, “para além de uma ironia autorreflexiva se nota uma busca existencial que parte de um estranhamento consigo próprio, um enigma subjetivo que é preciso resolver.

Mas, como?

A resposta que Patrícia dá é algo extremamente importante na literatura: talvez através do “capital simbólico”, que aqui não é apenas um conjunto variado de símbolos a serem interpretados, onde o símbolo é visto enquanto elemento material, objeto, figura animal, pessoa etc., considerado representativo de uma entidade, uma ideia, uma condição, mas é, – “após a desconstrução de referências que podiam nos orientar e que solapou o pensamento metafísico’ — algo sintomaticamente ligado ao sonho.

Paloma Vidal parece relacionar a expressão “rótulo duvidoso” à dificuldade em classificar [a obra de Levrero] como pertencente ao gênero do fantástico. Segundo Vidal, concluímos que tal obra não é “fantástica, mas sim ‘fantasmática’ e, em sendo assim, ligada fundamentalmente ao sonho, enquanto fábrica de símbolos. Numa série de livros do autor, e em particular em Deixa comigo, “o sonho é como uma espécie de laboratório, porque nele a mente, com efeito, trabalha sobre certos problemas e pode inclusive encontrar soluções para o que conscientemente parece bloqueado.”

“Os sonhos são lugares de estranheza, em que aparecem cenas, motivos, palavras que não sabemos direito de onde vêm, que não parecem nos pertencer; por isso mesmo é preciso prestar atenção neles: para tentar o encontro consigo mesmo que é tão precioso para Levrero.”

Esse encontro se realiza? Aonde leva essa busca? Eis a resposta de Vidal: “a lugar nenhum, de certo modo, ou melhor, quem sabe, ao sentido da própria busca, à sua origem, como em Deixa comigo — para poder continuar o caminho” (Vidal, 2013, [“A máquina de pensar em Levrero”.])

Portanto, conclui Patrícia,

Inserida num momento de desconstrução de referências, essa resenha crítica da Cult propõe indagações e questionamentos, um dos traços característicos da contemporaneidade.

O caminho percorrido pela crítica de Vidal – conclui Patrícia – pode elucidar um autor e os temas surgidos em sua escrita e em seu tecido literário, mas há também outros modus operandi da crítica, que se debruçam sobre outros aspectos do texto a ser analisado. Algumas vezes promovendo revisões históricas, sociais e literárias. É o caso que se dá, por exemplo, na crítica de Yann Perreau para a Les Inrocks, edição 1175, de junho de 2018, sobre o livro de Roxanne Dunbar-Ortiz em que a autora revisita a história dos Estados Unidos pelo ponto de vista dos ameríndios.

A análise das resenhas críticas Jantar de Frases Feitas e A Máquina de pensar em Levrero, ambas da Cult, e de A l’origine, le massacre e L’insurrection qui venait, da Les Inrock, conduziu à percepção de como as críticas selecionadas parecem trafegar pela tentativa de descobrir e de revelar o valor e o papel da literatura no mundo contemporâneo. O encantamento do crítico pela obra sugere a necessidade de conceber como seu dever propor reflexões e questões contemporâneas, e de valorar obras que desafiem, encantem e se mostrem relevantes. Em praticamente todas as resenhas críticas analisadas percebemos a sugestão de que esse tipo de obra literária parece se tornar cada vez mais incisivo – seja em virtude da criatividade, como aparece em Jantar de Frases Feitas, seja por surpreender o indivíduo pós-moderno como desviante e fragmentado. Neste sentido, a literatura carrega um grande capital simbólico capaz de ser usado para segregar ou para unificar.

Conclusão

Mas, o que conclui, de uma maneira geral, Patrícia das resenhas críticas analisadas?

Em primeiro lugar, que o papel da literatura permanece importante, como “difusora e intérprete da experiência humana”, seja ela adulta ou infantil, mesmo diante dos outros meios de reprodução cultural que nos desafiam continuamente.

E o papel da crítica? Ela decodifica signos e levanta questionamentos, deixando entender se o livro é “bom” (merece ser lido) ou não.

Quanto às semelhanças e às diferenças entre a Cult e a Les Inrocks, no que se refere às resenhas literárias escolhidas dentro da interpretação sócio-histórica de Patrícia Orlando, aqui vão as conclusões:

2 -Para além de questões metodológicas, o enfoque se concentrou de início nos movimentos culturais da década de 60 e nas tensões sociais que eclodiram, não só na produção artística e filosófica, mas também na formulação da crítica literária jornalística do período: além de uma mudança de método, identifica-se uma transformação nos motivos de se criticar. Tal movimento parece correr em interação dinâmica com o neoliberalismo emergente e na tentativa de intervir no modo de assimilação e consumo de produtos culturais. O jornalismo cultural parece se voltar para abordagens socioculturais e adota, assim, novas estratégias para abordar os problemas impostos pela sociedade.

2 – A Cult exemplifica uma cultura apocalíptica, nos termos de Umberto Eco, reflexo de um Brasil que jamais conseguiu se desvencilhar de um passado recente autoritário e um presente baseado na desigualdade; por outro lado, Les Inrocks exemplifica os paradoxos de nação colonizadora, mas que encara a cultura como formação.

3 – Foi possível perceber como a literatura é interpretada pela crítica jornalística em contextos socioeconômicos distintos. Como vimos, a literatura possui, principalmente no Brasil, um papel de instituição sacralizada em que o seu corpus é considerado um discurso intelectual privilegiado. Ao mesmo tempo, a crítica literária jornalística, sempre no Brasil, pelo menos aquela veiculada nas edições selecionadas da revista Cult, mostra-se mais à serviço da construção do que da desconstrução, enquanto que, nas resenhas francesas nota-se uma inclinação no sentido de instigar os leitores à reflexão sobre o seu tempo, havendo maior tendência a elucidar a estrutura subliminar do texto e da sua forma.

Dessa feita, as críticas da Les Inrocks propõem uma tentativa de construção do sentido literário e, em menor grau, a exaltação da figura do autor. Como já referido anteriormente, a sugestão é a de que a Cult, ao transformar a arte e a literatura em projetos simbólicos, reafirma as ideologias dominantes. É um gerenciamento das experiências receptivas que parece limitar as possibilidades de compreensão dos sentidos mais profundos do tecido literário.

4 – Cabe à literatura a função de descoberta e de interpretação da realidade social. Tanto a Les Inrocks, como a Cult se mostram comprometidas em criar em suas páginas um espaço de reflexão, ancorado no presente e como contraponto ao status quo.

“Diante das pressões midiáticas, tanto no Brasil, quanto na França, a literatura, em ambos os contextos, mantém-se como uma espécie de lugar privilegiado de pensamento crítico. A literatura parece ainda servir como baliza e como pista de valores humanos sobre o solo árido da contemporaneidade. A crítica literária jornalística, por sua vez, continua a tecer os fios do tecido referencial para amparar a mediação na recepção da arte, mesmo que por via dos produtos da indústria cultural.”

Curiosamente “em nenhuma das críticas observadas emerge uma preocupação substancial para induzir o leitor quanto à fruição da narrativa ou enredo das obras resenhadas.”

Foi justamente esta preocupação o intuito de minha intervenção. Levantar leis e procedimentos, nas críticas reunidas, que indiquem ao leitor como sentir aquele “prazer do texto” ao qual se referia Roland Barthes e que, ainda e sempre, continua sendo o principal movente para as nossas leituras.

Aurora Bernardini é professora, escritora e tradutora. É doutora pela USP com tese sobre o futurismo russo e italiano e fez livre-docência na mesma instituição sobre a poeta russa Marina Tsvetáieva. Já traduziu mais de cinquenta livros, além de ter organizado obras como O futurismo italiano: manifestos, Mitopoéticas: da Rússia às Américas e A estrutura do conto de magia.

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Novembro

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