Consciência de si, consciência de ti

Consciência de si, consciência de ti
(Foto: Bob Sousa)

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Fotos de Bob Sousa

Um dia conversarei com os meus mortos
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão
me contarão (sua) a minha história.
Cassiano Ricardo

Em um mundo mergulhado no uso obstinado das telas de cristal líquido, nenhuma outra arte priva de maior capacidade de aproximação e de contato direto, visceral, sem intermediação, com o ser humano do que o teatro. Espaço privilegiado de investigação da psicologia individual e coletiva, expressão da cultura universal particularizada em cena, da tradição e, ao mesmo tempo, do que sempre lhe seja contemporâneo, a arte teatral constituiu uma radiografia vibrante da história do homem. Do mais ínfimo problema que o atinge no dia a dia às grandes questões que cercam sua existência sobre a terra, o ser humano sempre haverá de ser tratado no palco pelo viés do heroísmo que lhe sobra ou lhe falta, em matizes que vão do sublime ao ridículo.

Eu de você, o espetáculo que Denise Fraga apresenta pela segunda vez em São Paulo – em cartaz, agora, no Teatro Sérgio Cardoso, até o próximo dia 12 de março –, é uma experiência cênica que, dentre suas inúmeras qualidades, tem a grande capacidade de expressar, ora pelas tintas da comoção, ora pelas da hilaridade, o heroico no cotidiano.

(Foto: Bob Sousa)

A dramaturgia, cujo texto final é assinado por Rafael Gomes, Luiz Villaça (que também dirige a montagem) e a própria intérprete, reúne histórias de vida de pessoas comuns (convidadas por anúncio a enviarem suas narrativas para a equipe de criação do projeto), excertos de textos literários e canções populares (executadas ao vivo por um quinteto de musicistas em cena) que, por meio do corpo e da voz de Denise, adquirem o estatuto de uma fascinante teatralidade.

O título – Eu de você – brinca com a categoria gramatical da pessoa, que como quase tudo na língua é pura convenção, estando sempre aquém de recobrir integralmente a realidade extralinguística a que faz referência. O que é comunicado quando alguém diz “eu”? (“Eu é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo”, diz Clarice Lispector; já para a escola indiana samkhya, o “eu” é algo ilusório). Pronome, inclusive, capaz de comportar um plural! “Nós” é de fato a reunião de vários “eus”? Não haveria em “nós”, posando de intrometido, um “tu” pluralizado também?

E quanto a “você”, ele é um pronome de segunda ou terceira pessoa? Não haveria a presença aí (igualmente, de enxerido) de um “tu”, agora no singular mesmo? As explicações do professor de português chegam a convencer? “É que você é a terceira pessoa gramatical, mas a segunda do discurso.” Sei… sei… O que importa é que aprendemos com o título do espetáculo que as pessoas – sejam elas gramaticais ou não – relacionam-se entre si muito além das convenções, estando destinadas a adentrar a esfera da pessoalidade umas das outras. Eu de mim, eu de ti, eu de si. Você de mim, você de ti, você de si.

(Foto: Bob Sousa)

Assim é que Eu de você aposta em duas linhas de força que a tornam uma peça de teatro eminentemente popular sem baixar a guarda para as ricas questões que sugere. A primeira delas diz respeito à bela homenagem que o espetáculo empreende à categoria do espírito humano que se imputa como inata, a pessoa, e que a modernidade houve por bem associar indelevelmente à ideia do “eu”. Embora cada sujeito perceba o senso do próprio corpo e tenha consciência da própria individualidade, é na experiência coletiva que a pessoa se realiza.

Pois bem, como resposta à vida social moderna, na qual a grande mercadoria, vendida em escala industrial, parece ser a hipertrofia do indivíduo – processo que o professor Alfredo Bosi denominou de “exacerbação da singularidade” –, o teatro insiste em sua admirável vocação para expressar o artesanato do espírito. Assim é que Eu de você nega o culto ao “eu”, substituindo-o por um ritual de respeito ao “eu”. Um “eu”, de fato, transformado em um “eu” ficcional (o fato e o ficto) cindido o tempo todo entre os planos pessoal e social.

Ao transformar cada pessoa que enviou sua história de vida em um personagem no palco, o espetáculo trata dos papéis cumpridos pelo indivíduo, seja nos dramas íntimos mais sagrados da vida, seja nas anedotas mais histriônicas, repercutindo a pergunta mais antiga que o teatro sempre fez e sempre haverá de fazer: “O que cada pessoa diz a respeito da humanidade?”.

(Foto: Bob Sousa)

O fato de Denise Fraga ser uma estrela da TV, do teatro e do cinema poderia levar ao risco da usurpação pura e simples das histórias recolhidas. Elas poderiam somente servir de veículo para o imenso talento da atriz. Entretanto, o efeito alcançado é bastante diverso disso. Dramaturgia, direção e atuação colocam a persona da atriz a serviço daquelas tantas histórias individuais, convertidas em ficcionais, fazendo com que a consciência de si equivalha à consciência do outro.

Concretamente, a imagem não poderia ser mais eloquente. Sozinha em cena, Denise Fraga não está sozinha em cena, pelo fato de seu corpo encarnar a noção latina de universitas, o múltiplo eu, uma pessoa repleta de pessoas. (Vale lembrar que no Bhagavad Gita, Krishna revela(se) à Arjuna de tal modo: “Tat tvam asi” – Tu és isso [o universo].) Nada mais adequado a uma arte que ainda acredita no dogma da velha fraternidade universal, nas lições das solidariedades imemoriais.

A segunda linha de força do espetáculo é o modo como ele lida com a emoção, não somente do que está sendo contado, mas também de como o que está sendo contado chega até a plateia. A emoção (em latim, ex-movere, mover para fora), aqui, é uma poderosa forma de comunicação, que em momento algum submete o espectador à tirania do sentimentalismo, da moralidade ou do senso comum. A emoção de que trata Eu de você é um gesto ativo, que “co-move” atriz, musicistas e espectadores e os move a saírem da esfera do eu. Para o filósofo francês Gilles Deleuze, “A emoção não diz eu. Estamos fora de si”.

(Foto: Bob Sousa)

Eu de você lida com as emoções de todos experimentadas por qualquer um, convidando o espectador a executar a comovente tarefa de reconhecer os sinais da própria alegria na felicidade dos outros, bem como as possibilidades interativas de tristeza nas dores que não lhe dizem respeito.

A emoção é o código próprio do espetáculo. “Todas essas expressões dos sentimentos do indivíduo e do grupo – coletivas, simultâneas, de valor moral e de força obrigatória – são mais do que simples manifestações, são signos de expressões inteligíveis. São uma linguagem”, afirma Marcel Mauss em “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de eu”. É por meio da exposição à emoção do outro que posso cambiar as coisas ao redor de mim. E do planeta. (Ex-movere, mover para fora.) Dado o caráter feérico do espetáculo, a emoção equivale mesmo ao mote de Georges Didi-Huberman (justamente em Que emoção! Que emoção?): “Eu queimo, eu ardo de paixão”.

Eu de você é um espetáculo luminoso. Pelo modo como conta a história que cada um tem para contar. Pela maneira como revela e encara a face da pessoa para além da máscara. Pela forma como respeita a intimidade do outro ao mesmo tempo em que se dispõe a aprender com sua subjetividade possível. A intensa luminosidade da proposta se dá no sentido de sua pequena grandeza, isto é, ao nível do lampejo. Como fazem os vagalumes.

(Foto: Bob Sousa)

Em outro livro notório – Sobrevivência dos vagalumes –, Didi-Huberman nos informa que “é preciso de cerca de 5 mil vagalumes para produzir uma luz equivalente à de uma única vela”. Que o teatro continue a extrair infinitas grandezas de sua cintilância. “Como uma vela – lembra a historiadora Margot Berthold –, o teatro consome a si mesmo no próprio ato de criar a luz.” De extrair da efemeridade seu sentido de permanência, Denise Fraga e a equipe de criadores de Eu de você entendem muitíssimo bem.

EU DE VOCÊ
Teatro Sérgio Cardoso – Sala Nydia Lícia (827 lugares)
Rua Rui Barbosa, 153 – Bela Vista, São Paulo
Sextas e sábados, às 20h30
Domingos, às 17h
Ingressos: R$ 80, R$ 40, R$ 50 e R$ 25
Duração: 90 minutos
Classificação: 12 anos
Até 12 de março

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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