Confira os livros do ano de personalidades da cultura em 2023
Marcia Tiburi:
Meu livro é Marrom e Amarelo (Alfaguara), de Paulo Scott. Eu o havia lido em 2018, quando ele saiu. 2018 foi um ano difícil para todo mundo e eu não lembrava do final do livro, talvez porque não tenha chegado ao final. Angustiada com minha falta de memória sobre o fim, eu o li todo de novo, bem agora, quando ele acaba de ganhar o Jabuti de publicação internacional. Paulo Scott deu uma lição sobre racismo nesse livro. Por baixo de uma prosa espantosa e viciante, vemos uma profunda reflexão sobre raça, família e senso de responsabilidade.
O livro do ano também é A nudez da cópia imperfeita (Editora Nós), de Wagner Schwartz, o performer que em 2018 foi vítima de uma campanha de difamação pelo MBL. Nesse livro, ele conta a sua história vivida num jogo com As memórias póstumas de Brás Cubas, já que parte das fake news que se espalharam sobre ele era de que havia morrido. Wagner é um escritor exímio, nato. Um livro que faz a gente rir e chorar e que certamente é um documento histórico do Brasil sob o fascismo que segue latente, mas muito perigoso.
Erika Hilton:
Um livro que chamou minha atenção esse ano foi Traficantes evangélicos. Acho pertinente essa análise para que possamos compreender as ferramentas que são usadas para a expansão do fundamentalismo. E como muitas vezes as igrejas cumprem um papel de Estado em vários sentidos.
Daniel Kupermann:
Para mim, o livro do ano é Ferenczi: a arte da psicanálise (Blucher), organizado por Rita Hentz, Denise Salomão Goldfajn, Bartholomeu de Aguiar Vieira, Diane Viana e Renata Mello, que traz na forma impressa o conteúdo do podcast homônimo produzido pelo Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi e veiculado pelo Spotify. São trinta capítulos sucintos dedicados aos principais escritos de Ferenczi, que vêm fazer justiça àquele que foi o principal interlocutor de Freud, podendo ser considerado o cocriador da psicanálise. No entanto, em função do caráter subversivo de suas ideias, o establishment psicanalítico cuidou para que Ferenczi sofresse uma verdadeira morte pelo silêncio (Todshweigen), deixando-o no ostracismo por décadas, o que limitou bastante a potência do pensamento psicanalítico.
Ivana Bentes:
Acabei de ler Terra: antologia afro-indígena (Ubu e Piseagrama) e fiquei impactada com os 25 ensaios que explicitam uma movida, um deslocamento, uma confluência de experiências, teorias, trajetórias de vida de grupos, povos e pensadores de uma oralidade exuberante e pensamento aterrado, territorializado, que impacta na cultura letrada e desarruma o cânone teórico. São escritas descolonizadas e decolonias ou contracoloniais, que fogem dos clichês, e trazem cosmovisões perturbadoras sobre a relação de quilombos e cidades, terreiros e cultura digital, cosmopolíticas indígenas e o antropoceno, favelas e periferias que fabulam uma imaginação social e política radicais e de um frescor intenso e contundente. Uma inteligência popular brasileira que a fala de Antônio Bispo dos Santos, Castiel Vitorino Brasileiro, Davi Kopenawa, pajés, indígenas e travestis transforma em um ensaísmo experimental político e em um manual de sobrevivência diante do fim e dos fins dos mundos que experimentamos.
Vladimir Safatle:
Gostaria de indicar um livro publicado em 2023 e que mostra a potência crítica da psicanálise: História popular da psicanálise (Ubu), de Florent Gabarron-Garcia. Trata-se de um estudo inovador que parte da consciência correta de haver uma espécie de luta de classes no interior da psicanálise. Isso produz uma dupla história. Uma delas, a mais conhecida, mostra a psicanálise como uma prática clínica que, por mais que permita a emergência da consciência dos processos de alienação próprios a nossas dinâmicas de socialização, por mais que mostre como nossas relações a ideais, autoridades, papéis sociais, nos faz sofrer, não consegue abrir espaço para além da necessidade de recuperar nossa capacidade de trabalhar e amar (como até agora se trabalhou e amou). Mas há uma outra história, popular, que mostra o comprometimento da psicanálise com lutas sociais de transformação estrutural de nossa sociedade. Essa história passa pelas experiências com a psicanálise na revolução soviética, nas periferias de Viena, em associações com a análise institucional, nas periferias de Buenos Aires, entre tantos outros lugares. Um livro necessário.
Helena Vieira:
O livro que mais me marcou neste ano foi Teoria King Kong, da escritora e feminista francesa Virginie Despentes, relançado no último dia 9 de novembro pela n-1 edições, ocasião em que fui convidada para uma conversa sobre a obra junto com sua tradutora Márcia Bechara. Esse livro é um acontecimento na vida de qualquer mulher que o leia e também de qualquer pessoa marcada pela exclusão.
Virginie não é uma feminista boazinha. O livro é duro, fala com franqueza das violências sofridas e se localiza com eloquência ao nos contar que fala desde o lugar das mulheres que são feias demais, fortes demais, incomíveis, putas, sapatões, gordas demais, pra todas essas para as quais a feminilidade parece uma piada de mal gosto: “Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal-comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça”.
Neste livro encontramos uma sofisticada discussão sobre a constituição das sexualidades masculinas e femininas, da recusa do direito à violência que parece acompanhar as normas do feminino. Também é um manifesto em defesa de uma posição não moralista com relação à pornografia, rompendo com a ilusão de que só pode existir uma forma de discurso pornográfico.
E, por fim, a perigosa ideia do “King Kong”, metáfora para nós, mulheres king kong, que não cabem, que oferecem medo aos homens, ao mundo, às loirinhas, às estruturas fálicas da metrópole. É um convite a perceber as possibilidades de existir neste lugar inabitável, de revelar a prostituição no casamento, o pornô no filme sacro e o king kong que somos todas. Fica o convite!
Alessandra Affortunati:
Uma obra marcante deste ano foi Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin. Embora seja um romance escrito entre as décadas de 1920-30, a partir de tal leitura encontrei uma chave de interpretação que iluminou, para mim, um certo conjunto de romances contemporâneos. A obra de Döblin assume uma forma épica e se constitui por uma espécie de montagem que acompanha o ritmo de uma metrópole europeia do século passado com o fascismo à espreita. Nela, Walter Benjamin reconheceu o protagonismo da cidade alemã (e não de personagens) e uma crise do gênero romance. Lendo por outro viés, notei um protagonismo não da cidade, mas da carne, que ainda se mantinha ali como sinal de barbárie. Depois de ler Berlin Alexanderplatz, li Torto arado, Sula, O avesso da pele e Quarto de despejo. Imbuída da matéria trazida por Döblin, me chamou atenção outro lugar dado à carne nesses romances mais recentes. Em Sula, por exemplo, a mãe mata o filho por amor – uma violência cujo registro aparece em outro lugar. Torto arado mostra o lugar da carne de maneira densa. De novo: não se trata mais de mero avesso da civilização, mas marca simbólica de uma linguagem da carne explorada pelas relações de trabalho.
Christian Dunker:
Meu livro preferido em 2023 foi O grupo e o mal, de Contardo Calligaris, um estudo erudito e bem informado sobre as razões da disposição em montagens perversas que subsidiam experiências históricas como o nazismo e os campos de concentração. Renovando conceitos como masoquismo, narcisismo e identificação de grupo, nesta que foi sua tese de doutorado, Contardo tornou-se atualíssimo para entender a emergência dos novos fascismos de extração neoliberal. Junto com O sentido da vida, temos um testamento vivo deste psicanalista, recém-falecido, que inspirou e formou gerações vindouras interessadas no pensamento social psicanalítico.
Tulio Custódio:
O livro do ano para mim foi When Crack was a King, de Donavan X Ramsey. O livro é uma abordagem bastante interessante sobre guerra às drogas, racialização e estigma social, baseados na disseminação do crack nos anos 1980 e 1990. Sua singularidade é por partir de histórias pessoais de diversos perfis de pessoas.
Roberta Estrela D’Alva:
As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, faz parte da série “grandes descobertas depois de adulta”. Conheci graças a Daniela Thomas, que me chamou para gravá-lo para a Supersônica, sua nova empreitada no universo dos audiolivros juntamente com Maria Carvalhosa, Beatriz Bracher e Mariana Beltrão. Meu primeiro contato foi no final do ano passado, e segui em 2023 lendo e relendo com total devoção esse livro-bomba, que com toda certeza é uma das grandes obras-primas da nossa literatura. A radicalidade poética de Marilene Felinto na criação da narrativa pela qual Rísia, sua personagem principal, nos conduz, é de uma coragem rara e espantosa. Ficção, depoimento e poesia se misturam em um texto em que não há espaço para o lugar comum e subterfúgios rasos, mas antes para o risco da invenção de linguagem. A cada frase, o nível de honestidade e crueza da personagem é tão intenso, que fica impossível se acomodar e não sentir as entranhas reviradas durante a leitura. As mulheres de Tijucopapo foi escrito em 1982, quando a autora tinha 22 anos, o que torna tudo ainda mais impressionante. Só não mais impressionante do que a falta de deferência que esse livro, que diga-se de passagem é vencedor de um Jabuti, tem no Brasil. Fato que ilustra didaticamente o quanto esse país foi, e ainda é, racista, lesbofóbico e careta. Mas o eco das vozes das amazonas pernambucanas de Tijucopapo retumba novamente nos nossos dias se revelando a toda uma nova geração que, juntamente com a abertura trazida pela tradução de obras fundamentais de autoras como bell hooks, Angela Davis e Alice Walker, vem des-cobrindo escritoras negras brasileiras e toda a enormidade da riqueza da sua produção literária.
Edimilson de Almeida Pereira:
Em 2023, me dediquei às leituras relacionadas à pesquisa de campo sobre as culturas populares no Brasil. Dentre as obras marcadas pelo rigor da análise e pela sensibilidade na percepção dos modos de vida de nossas populações menos favorecidas, destaco o livro O artesão da memória no Vale do Jequitinhonha, da professora Vera Lúcia Felício Pereira, publicado em 1996 pelas editoras da UFMG e da PUC-MG. Nos relatos dos rapsodos do Vale subjaz a tentativa do ser humano de atribuir sentido às suas formas de trabalho e à sua busca pelo Mistério. Para esses narradores e narradoras, urdir os fios da memória, colocando em diálogo o passado e o presente, consiste numa experiência maior, talvez a única que nos ensine a confrontar a nossa finitude.
Denise Stoklos:
Sonata ao luar, de Dalton Trevisan, que minha melhor amiga, minha irmã Dayse Stoklos Malucelli, me deu, próxima que é, desde os primórdios, do Vampiro, mais próxima que o nosso imaginável. Ela catou de um dos 120 únicos exemplares (com uma ilustração de Kafka na capa de pano) que Dalton publicou e revisou com 98 anos, em Curitiba, o que o torna o maior escritor brasileiro vivo, jamais por obviedade, sentido que não cabe junto ao nome e à obra dele, mas por todas as qualidades que ninguém mais na história a não ser ele mesmo construiu.
Marcelo D’Salete:
- Barrela, quadrinho de João Pinheiro e texto de Plínio Marcos.
João Pinheiro elaborou um trabalho extraordinário do submundo complexo e sujo de Plínio Marcos em quadrinhos. Uma obra excepcional sobre a realidade e os piores pesadelos do sistema carcerário.
- O pacto da branquitude, Cida Bento.
Uma obra essencial para conhecer as engrenagens do conceito de branquitude e da perpetuação do racismo. Além disso, traz discussões e registros relevantes da luta de grupos negros organizados contra o poder hegemônico nas últimas décadas no Brasil.
Geni Núñez:
Gostaria de indicar o livro Umbigo do mundo, dos parentes Francy Baniwa e Francisco Baniwa, com ilustração de Frank Baniwa. Um livro que nasce da oralidade e nos apresenta uma pesquisa profunda na cosmogonia do povo Baniwa. Escrito pela primeira mulher indígena a publicar um livro de antropologia, é uma homenagem à memória, tradição e histórias que alimentam a ancestralidade desse mundo Baniwa. Uma leitura que ilustra a vida no Alto Rio Negro e refloresta nosso imaginário.