Apocalipse estético: Ameryka da fome, do sonho e do transe
Glauber Rocha durante as filmagens de "Terra em Transe", registrado por Joaquim Pedro de Andrade em 1967 (Reprodução)
A fome e o sonho são dois temas privilegiados no seu cinema e pensamento, passagem de uma abordagem político-racional da miséria para uma experiência onírica e mítica que aparece em dois textos cruciais de Glauber, textos-manifestos que serviram de base ético-estética para todo seu cinema: “Eztetyka da fome” (1965) e “Eztetyka do sonho” (1971) [conforme a grafia particular do cineasta] – textos complementares, onde Glauber vai da fome ao delírio do faminto, fazendo da brutalidade e do onírico a base de um pensamento desestruturante.
“Eztetyka da fome” é o primeiro desses manifestos e o mais conhecido, escrito quando Glauber já tinha obtido reconhecimento internacional com Deus e o diabo na terra do sol. Nesse texto Glauber tematiza com urgência e virulência sobre “o paternalismo do europeu em relação ao Terceiro Mundo” e a “linguagem de lágrimas e mudo sofrimento” do humanismo, incapaz de expressar a brutalidade da pobreza.
Revertendo a fraqueza em força, Glauber propõe nesse primeiro manifesto uma “estética da fome e da violência”, em que os temas e metáforas da fome tornam-se a base de um novo pensamento, não-paternalista e não-humanista.
As metáforas da fome e da devoração já tinham alimentado o modernismo de 22, a teoria antropofágica de Oswald de Andrade e marcariam o movimento pop-tropicalista brasileiro. A fome vinha sendo tematizada no cinema brasileiro e latino-americano dos anos 60 de modo fenomenológico, social, político, estético, poético, demagógico, experimental, documental, cômico, diz Glauber. Mas sua proposta iria além: transformar a fome em “princípio”, uma espécie de “impensado” latino-americano, capaz de funcionar como motor de um pensamento, novo.
Em “Eztetyka da fome” não se trata de romantizar ou glamourizar a fome e a miséria: “a pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem”, diz Glauber no seu texto; mas partir dela, como dado do presente para constituir “uma cultura da fome”, intolerável e explosiva, capaz de problematizar-se e superar-se. E a chave para essa virada, é constituir uma estética da violência.
A questão não foi superada nem “resolvida” pela arte contemporânea latino-americana, que ainda se vê enredada em aporias do tipo: como tematizar a “fome” sem fazer da pobreza e da miséria um plus, um charme adicional, nicho temático, entre a denúncia, o miserabilismo exótico-típico, e o paternalismo? Fome e miséria racionalizadas, explicadas, “conformadas” e entendidas como um dado “natural”, ou “decorativo”?
Como não transformar a estética em cosmética da fome, com filmes e obras em que a fome e a miséria despertam o horror ou a piedade , ou ainda são embelezadas e dão um toque exótico a filmes de ação e entretenimento?
Voltamos a Glauber. “[A fome] para o europeu é um estranho surrealismo tropical”, escreve, ou ainda: “Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia de primitivismo”.
A essa leitura piedosa e nostálgica da miséria, Glauber propõe uma saída estrutural. Para “compreender” a fome, dentro ou fora da América Latina, seria necessário violentar a percepção, os sentidos e o pensamento: “o público não suportando as imagens da própria miséria” (…) “Assim somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.
Em “Eztetyka do sonho”, Glauber vai rejeitar a leitura sociológica da esquerda, que “racionaliza” a miséria ao encaixá-la no teatro da luta de classes, como um “mal necessário” do capitalismo, superada apenas com a supressão deste sistema. O que Glauber parece dizer é que nenhuma explicação histórica, sociológica, marxista ou capitalista, pode dar conta da complexidade e tragédia da experiência da pobreza, algo, para ele, da ordem do incompreensível, do “impensado” e do “intolerável”.
É esse “impensado” que leva Glauber a uma nova visada, explicitada no seu segundo manifesto, “Eztetyka do sonho”, escrito seis anos depois do primeiro e apresentado aos alunos da Universidade de Columbia, nos EUA. Texto escrito depois da experiência de filmes como Terra em transe, Câncer, O dragão da maldade contra o santo guerreiro e de sua saída do Brasil, em 1970.
A impotência e a perplexidade com os rumos políticos do Brasil pós-golpe de 64, a exacerbação da repressão política no país, na década de 70, a tragédia e opressão das ditaduras latino-americanas, o transe político e de consciências, a fragilidade de intelectuais, militantes, estudantes e artistas; o conformismo popular, levam Glauber a uma nova questão. Lutar não no campo da razão opressora, mas nos territórios da desrazão e do mito.
“A Estética da fome era a medida da minha compreensão racional da pobreza em 1965”, escreve Glauber no novo manifesto: “Hoje recuso falar em qualquer estética. A plena vivência não pode se sujeitar a conceitos filosóficos. Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda.”
Glauber cita Jorge Luis Borges e Luis Buñuel para falar da necessidade uma “sensibilidade dilatada” que “elabora na mística seu momento de liberdade”.
Nem a fome pode ser “compreendida”, nem a revolução pode ser “racionalizada”. A m intolerável da experiência, Glauber responde com uma rebelião igualmente “irracional”, onírica, mística e apocalíptica. Capaz de desestabilizar toda ordem, estrutura ou sujeito. Glauber começa a articular a relação entre misticismo, mito, religião e revolução, um movimento extremamente original no pensamento latino-americano.
Nesse movimento, parte para uma desidealização do povo e ao mesmo tempo para a construção de uma mitologia popular poderosa, capaz de fazer frente a um imaginário colonizado ou colonizador: “Os Deuses Afro-índios negarão a mística colonizadora do catolicismo, que é a feitiçaria da repressão e da redenção moral dos ricos.”
Evitando cair numa mera idealização desse povo colonizado, Glauber analisa os diferentes efeitos da fome sobre a consciência e o inconsciente popular:
“[A pobreza] repercute psiquicamente de tal forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística.”
Glauber vai trabalhar com essas duas experiências de forma original. Em seu cinema não encontramos uma única chave de abordagem da pobreza: nem conformismo, nem misticismo serão tratados de forma “explicativa” ou “realista”. Trata-se de uma operação simbólica e mística que entrará em curso no seu pensamento e cinema.
É da fome que Glauber parte para chegar à estética do sonho e do transe, à estética da violência e do inconsciente e a uma ética do intolerável. Mas a fome, no seu pensamento, sofre uma série de transmutações e torna-se uma metáfora do desejo e do devir revolucionário e também uma “fome de absoluto”, como brada o poeta/guerrilheiro Paulo Martins, no final de Terra em transe (1967). Glauber passa da fome ao sonho e ao transe, num movimento habilidoso do pensamento, indicando tanto o conformismo na miséria quanto explorando a carga trágica, mística e potencialmente transformadora da fome e da pobreza.
Misticismo e violência são duas entradas chaves para o seu pensamento. Ao invés de trabalhar no campo da razão e da consciência, Glauber procura mostrar que toda ordem, estrutura ou indivíduo poderá ser submetida, confrontada a um transe ou crise radicais, capazes de despertar um pensamento que nasce dessa violência.
Glauber vai dar um sentido estético, ético e místico à palavra revolução. Transe e crise são condições de um cinema diferencial que nasce dos impasses diante do que é “terrível demais, belo demais, intolerável”. Algo que excede nossa capacidade de reação: uma beleza ou uma dor fortes demais. Ao invés de um pensamento ou de um cinema que tolera e suporta praticamente qualquer coisa.
Do exercício da crise, nasce sua pedagogia ou estética da violência. Nos seus filmes, o povo é chicoteado, espancado, amordaçado, fuzilado. Ao invés de condenar “moralmente” a violência e exploração, representa essa violência com tal radicalidade e força que ela passa a ser um intolerável para o espectador.
Não se trata de uma “espetacularização” da violência ou sentimentalização da impotência. Para Glauber, a violência é “um amor de ação e transformação”. O marxismo de Glauber tem algo de sádico e histérico, de apocalíptico e messiânico. Para explodir, a revolução tem de ser precedida por um crime ou massacre. Daí seus filmes tematizarem confrontos, violências, transes, mais do que alianças ou apaziguamentos.
Em Glauber podemos falar de uma pedagogia da violência que responderia a uma questão crucial: como passar da “alienação” e passividade à resistência e atividade?
A pedagogia da dor e da violência é, em Glauber, o primeiro momento da constituição de um povo. Ela é explicitada em Terra em transe na fala do poeta Paulo Martins: “eu bati num pobre camponês porque ele me ameaçou. Podia ter metido a enxada na minha cabeça, mas era tão covarde e tão servil! E eu queria provar que ele era tão covarde e servil”. E depois, “a caridade apenas adia, agrava mais a miséria”.
“De sangue se desenha o Atlântico”, diz Paulo Martins. O cinema novo, tão múltiplo e singular na obra de cada um dos seus cineastas, vai tratar da violência, da miséria e do povo, de forma diferenciada. O sadismo de Glauber, sua ira revolucionária diverge da lírica-romântica de filmes como Rio, zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos ou mesmo do classicismo humanista de Vidas secas, também de Nelson Pereira.
Com Terra em transe, Glauber coloca esse povo (subserviente, vitimizado, fraco) em questão com a mesma radicalidade e paroxismo com que criticou o intelectual de esquerda, Paulo Martins, um Hamlet tropical, entre banhos de sangue e exaltação poética, em estado de possessão. Esse tipo de representação crua de um povo despotencializado e submisso combinado com uma pedagogia da violência produziu certa animosidade na esquerda brasileira, e Glauber chegou a ser chamado de “fascista”.
Numa outra torção e afastando-se da solução “conciliatória” ou paternalista na representação das relações de poder entre diferentes classes, nos seus filmes e textos rejeita-se a posição do intelectual como “legítimo” representante do povo assim como o discurso da exaltação ou “vitimização” desse povo, comum nos anos 60. Glauber também aponta novos agentes e mediadores da cultura (o cangaceiro, o beato, o mercenário, os místicos em Deus e o diabo ) que destituem o intelectual do seu lugar privilegiado como agente de saber e transformação.
Em Deus e o diabo na terra do sol , Glauber instaura discursos ambíguos. Os cangaceiros tornam-se “revolucionários primitivos” e agentes de transformação social; os beatos surgem como figuras catalisadoras de forças sociais à deriva; mercenários, como o personagem de Antonio das Mortes, podem assumir uma função transformadora e aceleradora de mudanças sociais. Antonio das Mortes mata pobres e camponeses sob o comando de latifundiários e da Igreja em nome de uma “revolta radical”, a precipitação do intolerável como acelerador das mudanças.
Caráter apocalíptico e messiânico do cinema de Glauber, que ecoa em muitos dos aforismos de Oswald de Andrade sobre a antropofagia e a revolução como “culturas naturais” e nosso barbarismo e vitalismo violento como virtudes transformadoras.
Esse cinema da desestabilização e do transe marca filmes como Deus e o diabo, Terra em transe , O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Cabeças cortadas, Di e A idade da terra. Nesses filmes, Glauber tematiza o transe do povo faminto, mas também o que poderíamos chamar de pulsões anarco-ditatoriais da elite. Seus personagens, Paulo Martins, Porfírio Diaz, Brahms, o Cristo Militar, vivem as delícias e loucuras do poder de forma desmesurada, numa pura hybris.
Glauber tematiza esse “inconsciente anárquico” ou rebelde como uma força de desestabilização que pode ser a qualquer momento revertida para um devir revolucionário, que explode todas as configurações de classe ou históricas. Dessa forma, seu “militarismo revolucionário” (a crença de que havia um papel para os militares brasileiros no processo de abertura) é uma aposta num inconsciente rebelde militar, que a qualquer momento pode juntar-se ao inconsciente explodido de camponeses, operários, miseráveis.
Nessa dissolução das dualidades, o cinema de Glauber utiliza-se de narrativas alegóricas e/ou em forma de parábolas, discurso que marca a década de 60 (relacionando o antigo e o novo, o histórico e o atemporal, o mais moderno e o mais arcaico). As alegorias são materialização de conceitos. Glauber cria tipos alegóricos, não-psicológicos que se definem pela sua exterioridade e imagem: enfeites e adereços, figurinos, símbolos e ícones religiosos, e diferentes estéticas vindas do catolicismo e do folclore afro-brasileiro. Glauber também valoriza a metáfora, não como uma forma de dizer o proibido, mas como linguagem simbólica e poética.
O cinema de Glauber é assombrado pela história e pelos mitos fundadores e instauradores do que seria uma civilização pan-americana. Constrói um discurso não apenas sobre o Brasil, mas tenta esboçar um pensamento transnacional, pan-americano, luso-afro-brasileiro, ibero-hispânico, euro-latino ou tricontinental, inserindo o devir latino-americano na história do capitalismo.
Glauber valoriza a mitologia como discurso sobre o presente e também como lugar de construção de novas mitologias nacionais-universais.
A utilização de narrativas míticas e religiosas no seu cinema surge num contexto histórico, os anos 60 e 70, em que prevalece a leitura marxista de desqualificação do mítico e do religioso, vistos como discursos de mistificação e “alienação”. Glauber concilia as duas vertentes, num discurso de crítica e apropriação do mito, que cria um materialismo-místico. Os mitos funcionam não como discurso de apaziguamento, mas como modelos de ação e transformação sobre o presente.
Trata-se nos dois casos de, através do cinema, abrir-se para o discurso do outro: para a alteridade, o estranho, o irracional, o inconsciente na elaboração de uma espécie de misticismo de esquerda. “Precisamos também dos santos e orixás para fazer nossa revolução que há de ser sangrenta, messiânica, mística, apocalíptica e decisiva para a crise política do século XX.”
A questão dos mitos e da mitologia é a contrapartida da força demolidora e desmistificadora, vulcânica, que impulsiona seu cinema. Anarco-construtivismo, que significa demolir para reconstruir, devorar os velhos mitos para recriá-los. Profetismo, apocalipse e reconstrução que funda uma mitologia onde o próprio Glauber, como Oswald de Andrade – bufão, polemista, agitador cultural, provocador –, se insere (“sou o profeta da anistia”; “eu sou o cinema novo”; “a Embrafilme foi construída sobre o mito Glauber Rocha”).
No seu último filme A idade da terra, um dos mais radicais em termos estéticos, Glauber configura toda uma série de forças emergentes no Brasil e no contexto internacional – as comunidades de base da Igreja Católica; a ascensão do operariado como força organizada no ABC de Lula, então líder metalúrgico que hoje chegou ao poder, numa trajetória glauberiana; o discurso das mulheres; dos negros; índios; místicos; “minorias”; que começava a entrar nas universidades e no espaço político –numa parábola política.
Uma profunda intuição do devir das forças políticas, que Glauber não viu se realizar, mas que apontou de forma visionária. A idade da terra é um filme único na história do cinema mundial, constelação “insuportável” ou redentora, que gira em torno de um Cristo revolucionário e amoroso do Terceiro Mundo e de uma frase repetida durante todo o filme: “O pássaro da eternidade não existe. Só o real é eterno”.
Se historicamente ou materialmente a revolução desejada por toda uma geração não aconteceu, Glauber monta seu apocalipse estético-revolucionário-cinematográfico e projeta no Brasil o seu “Parayzo Material Dezenraizado” construção cinematográfica e messiânica de uma democracia mística brasileira instaurada pelo cinema e pela arte em sintonia com o econômico, o cultural e o industrial, acreditando que “um conjunto de filmes em evolução dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência”.
Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e organizadora de Cartas ao mundo: Glauber Rocha (Companhia das Letras)