Comunicação nos tempos da pandemia
Nunca foram vistos tantos especialistas e pseudo-especialistas em infectologia opinando sobre o assunto (Foto: Michael Appleton)
As moléstias infectocontagiosas não são um privilégio do Brasil, mas várias delas têm características endêmicas em nosso país há muitos anos e fazem parte do cotidiano da maior parte da nossa população, especialmente em seu segmento mais carente.
Elas decorrem de fatores como desigualdade social, falta de saneamento básico adequado e aspectos econômicos, mas também refletem o grau de desatenção com a saúde pública no Brasil, algo que deve ser corrigido o mais rápido possível.
Essas moléstias se tornaram cada vez mais frequentes e, inclusive, ganharam destaque na música “O pulso” (Marcelo Fromer, Tony Belloto e Arnaldo Antunes), que vale a pena ser ouvida e analisada como uma crítica social.
Lançada há mais de 30 anos, a canção continua atual, já que as doenças mencionadas não desapareceram – pelo contrário, outras se manifestaram e até ressurgiram.
Dengue, escarlatina, raiva, peste bubônica, cisticercose, tuberculose, febre amarela, malária, zika, chicungunha, coqueluche, difteria, esquistossomose, caxumba, doença de Chagas, encefalite, tétano, sarampo, influenza, H1N1 (e todas as suas variantes), hepatite, gonorreia, sífilis, SARS, toxoplasmose, brucelose, febre tifoide, varicela, herpes, mononucleose.
Doenças antigas, novas, crônicas ou agudas levam uma legião de pacientes aos hospitais, sobrecarregando um sistema de saúde que há muitos anos trabalha além da sua capacidade.
O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire disse que “ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Eu diria que “ou o Brasil acaba com as doenças infecciosas ou as doenças infecciosas acabam com o Brasil”.
A pandemia apenas escancarou uma sobrecarga que já existia no sistema de saúde muito antes da Covid-19. E mesmo trabalhando no limite, um sistema público de saúde organizado e hierarquizado como o Sistema Único de Saúde (SUS), mostrou-se fundamental e tem feito a diferença no enfrentamento à doença.
Mas além de ter causado uma grave crise sanitária, a Covid-19 também afetou os meios de comunicação com o aumento da presença de temas da saúde na mídia. Ao mesmo tempo, nunca houve tanta desinformação a esse respeito. Palavras raramente usadas pela população passaram a fazer parte de qualquer roda de conversa, em qualquer esquina – antes limitadas a discutir o resultado de futebol, o comportamento do árbitro, o sofrimento da mocinha da novela ou o eliminado da semana do BBB.
Isolamento, quarentena horizontal, quarentena vertical, lockdown, contaminação, infecção, infestação, incubação, evolução, álcool gel, máscara cirúrgica, máscara N 95, face shield, imunidade, RNA, genoma, hidroxicloroquina, bloqueio total, UTI, surto, endemia, epidemia, pandemia.
De repente todos os brasileiros se tornaram especialistas em moléstias infecciosas e epidemiologia; alguns, mais ousados, inclusive opinam professoralmente em rede nacional sobre temas que conhecem apenas de forma muito superficial.
As palavras se misturam de forma aleatória e repetitiva 24 horas por dia, sete dias por semana, em todos os meios de comunicação e em todas as esquinas. O incauto cidadão se imagina no meio de um desfile de carnaval cantando o “Samba do telespectador doido”, lembrando Stanislaw Ponte Preta. Palavras usadas de maneira errada, transmitindo informações distorcidas, meias verdades, teorias da conspiração, charlatanismo, pseudociência e fake news levam a população a um caminho de insegurança.
Nunca foram vistos tantos especialistas e pseudo-especialistas em infectologia e saúde pública opinando sobre o assunto.
A atual torre de Babel só tem contribuído para aumentar o caos e a insegurança da população. Em épocas de crise, a comunicação é fundamental. Precisamos urgentemente de um pacto entre todos os setores da nossa sociedade para que tentemos falar a mesma língua e possamos fazer essa difícil travessia com o menor grau de dano possível.
Essa união será fundamental, ainda mais ao considerarmos que após essa etapa haverá necessidade de outro esforço, provavelmente até maior que o atual, para que possamos dar assistência e conforto a uma multidão de pacientes com doenças as mais variadas possíveis que, devido à pandemia, tiveram seu atendimento postergado. Mais uma vez precisaremos de organização e comunicação efetiva, clara e padronizada. Para que o pulso continue pulsando.
Tarcisio Eloy Pessoa de Barros Filho é diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP)