Com muita cerimônia

Com muita cerimônia

Alcir Pécora

O Presumível Coração da América reúne 26 discursos de Nélida Piñon (1937-) pronunciados em diversas “tribunas canônicas”, entre os anos de 1985 e 2002, em circunstâncias geralmente associadas à condição de membro da Academia Brasileira de Letras (desde 1990, na cadeira de número 30) e de sócia do Pen Clube do Brasil.

Piñon persuadiu-se a “liberar esses discursos” por verificar neles marcas de seu “enredo pessoal”, assim como de “instâncias públicas”, cuja memória “reclama preservação”. Neles reconhece o “rigor e a mesma paixão” que julga existir em tudo que é lavra sua. Acrescenta que “o esforço por assimilar a eloquente prática masculina”, a qual “pode propiciar, em partes iguais, compromisso estético, cívico e moral”, propiciou-lhe, no seu caso, “um desnudamento pessoal”.

Do conjunto de discursos, seis são efetuados em ocasiões nas quais Piñon recebeu distinções importantes, entre os quais o Prêmio Juan Rulfo (1995) e o Prêmio Jorge Isaacs, na Colômbia (2001), além de dois títulos de doutor honoris causa, das Universidades de Santiago de Compostela (1998) e de Poitiers (1997).

Das 20 orações restantes, mais da metade é enunciada entre dezembro de 1996 e dezembro de 1997, quando Piñon ocupou a presidência da ABL no ano de seu primeiro centenário – efeméride comemorada não apenas no âmbito da academia, mas em sessões
de homenagens do Senado Federal, da Assembleia Legislativa de São Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro etc. Além delas, e à exceção da comunicação efetuada no I Fórum Latino-americano, no México, as demais foram ditas em velórios e sessões de saudade, ou em cerimônias de posse da ABL e do Pen Clube.

Os veementes discursos de Piñon, contudo, ao contrário do prometido, não dão margem a qualquer nudez da autora, pois se revestem, sempre, do lugar oratório de extração pseudorromântica e neoparnasiana. Da primeira à última página, com coerência de máquina, desfilam as mesmas fórmulas de elocução grandiloquente aplicadas a um corpo batido de noções confusas, isto é, substanciosas e sublimadas, mas preconceituais e de senso comum.

Não há oração que não considere o “mistério” das origens; a epopeia da “aventura do espírito” e do “drama humano”; a “alma brasileira mestiça” ou a latino-americana “diversificada ancestral”; “o fardo dos enigmas indecifráveis”; a “memória soterrada” que dá nascimento à profusão de narrativas; o “inapreensível poético” e a “paixão pela escrita”; o “amor exaltado” pela língua lusa; o exercício e a “febre do imaginário”; os “secretos escaninhos do idioma”; a “unidade literária do gênio brasileiro”; os prodígios do sonho e do devaneio à caça de uma “arqueologia” mítica…

Tudo transpassado de “nostalgia profunda”, que vai buscar metáforas “inaugurais” nos gregos, nos celtas, nas autoridades medievais, nos navegantes lusitanos, como se fossem fantasias de menina alegadamente precoce.

Piñon autoriza-se como porta-voz não apenas da academia, mas de um coletivo de antepassados, dela e de todos nós: dos sentimentos de alguma mágica associação ancestral que tem o prazer de nomear como “grei”. Ou seja, a “senha da identidade” pessoal e coletiva alegada nos discursos deve ser entrevista nas brumas de uma “cosmogonia” difusa, de tão transbordante sublime, que tem de ser reconhecida igualmente como fria e requentada, reduzida ao “ritual da cerimônia”, uma rotina sem sentido além de adular a própria celebração.

Onde, pois, a “preciosa matéria enfim guardada no coração feminino”?

alcirpecora@revistacult.com.br

(1) Comentário

  1. O professor Pecora tem autoridade e capacidade pra escrever e acabar com a escritora Nélida Pinon que eu sempre achei muito chata.Ele pode.Uma vida inteligente nesse terreno de ovelhas submissas.

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