Coluna – Francisco Bosco
A graça e a desgraça de Wilson Simonal
Francisco Bosco
Uma tragédia de erros: assim poderia ser definido o gênero sui generis da vida de Wilson Simonal. Como relata o excelente filme Simonal – ninguém sabe o duro que dei, o cantor, no auge de seu sucesso, quando chegou a ser uma das pessoas mais famosas do Brasil (concorrendo com Roberto Carlos e abaixo apenas, talvez, de Pelé), desconfia de que está sofrendo desfalques de seu contador e manda que lhe deem uma surra. Acionada pela esposa do contador, a polícia descobre que Simonal foi o mandante do crime, que por sua vez foi perpetrado por dois agentes do Dops. Para safar-se da acusação, o cantor se sai com uma história inverossímil sobre ameaças terroristas que estaria recebendo e alega ter amigos na polícia política. Estamos em 1971. As ligações nebulosas do cantor com membros do Dops transformam-no imediatamente em dedo-duro e desencadeiam uma implacável campanha pública de difamação. Pelo crime contra o contador, Simonal foi condenado, após julgamento, e pegou cinco anos, que cumpriu em regime aberto. Já por sua suposta atividade de informante da ditadura, embora disso nunca tenha havido provas, foi condenado, sem julgamento legal, a um ostracismo siberiano em seu próprio patropi. Daí em diante sua vida pessoal iniciaria uma longa e severa decadência, e sua vida pública transformar-se-ia num tabu, no grande recalque da história da música brasileira. Cabe então procurar compreender quais as questões em jogo nessa encruzilhada entre a fama e o ostracismo, o apogeu e a queda, o poder e a impotência.
Há uma breve e despercebida cena, no filme, que concentra todo esse imbróglio e retrospectivamente não apenas o ilumina, como também o prefigura. Nela, Simonal está fardado (ele servira o Exército, onde começou sua carreira musical cantando calipsos nos bailes do 8o Grupo Móvel de Artilharia de Costa), prestando um serviço burocrático. O serviço é de datilografia, mas logo os dedos começam a bater ritmadamente nas teclas da máquina, o tlec-tlec mecânico dá lugar ao telecoteco sincopado, a máquina burocrática vira instrumento lúdico, a farda vira farra, e assim a lei, sem se dar conta, é inteiramente subvertida, por dentro. Essa história conhecemos bem. Ela é a do negro pobre, para o qual o serviço militar é obrigatório (pois, para os mais ricos ou bem relacionados, o serviço militar obrigatório não é obrigatório), para o qual, portanto, a lei é e não é a lei. Aqui reside o busílis: para os pretos e pobres a lei não afrouxa, e assim é verdadeiramente a lei; mas, se no mesmo momento, ela, para os ricos, cede e concede, deixa de ser a lei. Se a mesma lei não é a mesma, ela se autoanula como lei, e assim é impossível, para quem desse modo a percebe, identificar-se com sua impessoalidade, sua universalidade. O preto pobre, oprimido pela lei, quando ascende socialmente, é apesar da lei, e não por causa dela; daí que, ao contrário, uma vez tornado rico, tende a passar ao outro lado da lei, e identificar-se com o opressor.
A graça
Esse corpo que subverte a lei sem confrontá-la diretamente (não poderia fazê-lo), que habita o espaço ambíguo entre a ordem e a desordem, é um corpo dotado de graça. Da opressão do trabalho repetitivo e alienado ele procura safar-se pelas bordas, na informalidade, multiplicando expedientes, como for possível. Estamos, como se sabe, no ethos da malandragem. Aqui, paradoxalmente, o ócio é resistência. O princípio do menor esforço é resistência corporal e subjetiva contra o maior esforço imposto desde fora, por uma lei de cartas marcadas. Esse princípio produz uma graça: como já definia Edmund Burke, no século 18, o maior requisito da graça é não haver nela aparência de dificuldade. Pois Simonal canta com a mesma graça, com a mesma ausência de esforço que transforma a máquina datilográfica em tamborim. Essa graça é a característica maior de sua arte, na radicalidade dessa ausência de esforço reside sua grandeza. A graça se encontra na voz poderosa e aveludada, que se sente que sempre poderia ir bem mais longe do que vai (para quê, afinal?); nas divisões rítmicas do canto, inventivas, mas nunca bruscas; no andamento tantas vezes mais lento, cadenciado, de suas canções; e mesmo em sua dimensão de showman, ao reger multidões enfeitiçadas, deixando-as cantar enquanto descansa a voz.
Em nenhuma outra interpretação sua, contudo, tudo isso fica mais evidente que em “País tropical”, de Jorge Benjor. Nela, o clássico ufanista recebe um tratamento que, voluntariamente ou não, acaba revelando a base ambígua da jactância nacionalista. Para começar, opta-se por uma levada “salseada”, mais cadenciada, relaxada. Na segunda vez em que a letra é cantada, Simonal suprime a última sílaba das palavras, dizendo só o suficiente para que se lhes entenda o sentido: “Mó num pá tropi/ abençoá por Dê/ e boni por naturê”. O ufanismo, por excesso, atinge um tom quase paródico. É um exagero, mas não absurdo, dizer que essa sílaba que falta é a distância que sempre nos faltou para passar de “gigante pela própria natureza” a “teu futuro espelha essa grandeza”. Esse ufanismo incompleto, preguiçoso, é a graça em seu estado mais revelador: pois a falta de esforço é também a “desorganização geral”, “a falta de organização moral”, para usar termos de Mário de Andrade.
A desgraça
Assim, resultante de um movimento dialético com a lei, a graça corre o risco de voltar a dialetizar-se com ela, revirando-se dessa vez em desgraça. É, parece-me, o que se passa no episódio do contador. Uma vez tendo ascendido socialmente, Simonal teria tido a sensação de que estava por cima da lei (já que antes estava por baixo dela). Manda surrarem o contador e, em seguida, absolutamente alheio à gravidade política da situação, aproxima-se dos membros da ditadura. É coerente. Pois, para posicionar-se contra a ditadura, teria que reconhecê-la como um poder que se apoderou ilegitimamente da lei, impondo o arbítrio – mas como, se a lei, para pretos pobres como ele, sempre se apresentou, (in)justamente, como arbítrio? Na impossibilidade de reconhecer a lei como tal, isto é, como o que impede a divisão entre opressores e oprimidos, só lhe resta identificar-se com um dos polos da oposição; no caso, o dos opressores, posição que julgaria ter conquistado legitimamente, o que, na lógica ambígua da sociedade brasileira, deve querer dizer apesar da lei.
Todo esse campo de relações entre a lei e suas vicissitudes no Brasil, bem como entre a escravidão e suas consequências sociais, vem mudando nas últimas décadas. O que venho descrevendo aqui em parte já está – acredito e espero estar certo – defasado com relação ao nosso presente. Mas o episódio que envolve o Senado neste momento (bem como os infindáveis episódios de patrimonialismo, fisiologismo e outras arbitrariedades que compõem a cena deplorável de nosso Poder Legislativo) é por si só capaz de evidenciar também o quanto nós não avançamos. O sociólogo Demétrio Magnoli declarou que, se por um lado, no Brasil, a elite econômica já não coincide mais com a elite política, por outro lado a nova elite política continua querendo desfrutar os mesmos privilégios da antiga. Assim, um princípio saudável de plasticidade social é pervertido em perpetuação das injustiças. Aqui, como na leitura que proponho do episódio envolvendo Simonal, é mais uma vez a lei que sucumbe, e bem no centro de onde deveria emanar o seu poder (ou mesmo sua realidade): o pobre, ao ascender, identifica-se com o opressor, reproduzindo consequentemente o oprimido.