Coluna – Francisco Bosco
O Haiti (não) é aqui, Dubai também (não) é
Francisco Bosco
Num dos primeiros ensaios de seu novo livro, Estado crítico – à deriva nas cidades (Publifolha, 2009), Guilherme Wisnik cita um relato de Julio Cortázar e Carol Dunlop, em que um casal de “cronistas-expedicionários-tripulantes” de uma Kombi se detém em todas as 65 paradas de descanso à margem da estrada que liga Paris a Marselha, distendendo assim um trajeto que normalmente demoraria oito horas e transformando-o em “largos 33 dias de viagem estacionária”. Desse modo, “vivendo cotidianamente na autopista”, eles vão, segundo Wisnik, pouco a pouco “se desligando do automatismo inerente a tal percurso (…) e encontrando a variedade dentro da monotonia”. Pois é a um mesmo tipo de viagem, ainda mais radicalmente estacionária, que nos convidam os textos de Wisnik, cuja proposta central é a de desautomatizar nossa experiência da(s) cidade(s), a fim de ver, propriamente, o que em geral não se vê porque demasiadamente visível (como lembra o provérbio chinês, “o ponto mais escuro é debaixo da lâmpada”), ou o que não se vê porque invisível, só existindo a partir de uma apreensão simbólica, de uma faculdade de visão abstrata que define a condição existencial do filósofo, do ensaísta, em suma, do teórico (que Wisnik realiza com excelência, sendo ele também um arquiteto).
Trata-se de um livro de muitas e impressionantes virtudes, que começam na relação entre o visto e o modo como se dá a ver e projetam-se rumo a um ponto virtual que se situa na própria realidade. Sim, pois, como se não bastasse a profusão de ideias, sempre claras e insuspeitadas, dadas a ver por meio de um estilo direto e fluente, que evita qualquer desperdício discursivo, o livro, em sua maior e mais decisiva parte, move-se num espaço ambivalente, transicional entre o intransitivo e o transitivo. Em outras palavras, esse ensaísmo de ideias e de vasto e seguro saber (pois há ensaísmos sem uma coisa ou outra) não pode se contentar, pela natureza mesma de seu objeto, em apenas ver, por isso se tensiona incessantemente à transformação do visto, a percepção projetando-se em ação, e a ação, por sua vez, sendo determinada pela visão, considerada estrategicamente, articuladamente, a fim de que seja capaz “de desenhar situações, mais do que coisas”. Justamente, o estado crítico (no sentido de grave, delicado) das cidades refere-se decisivamente à ausência de um estado crítico (reflexivo, propositivo) em sua urbanização, muitas vezes destituída de urbanidade, entregue, como “pacote para presente”, à exploração saqueadora do capital.
Enclaves fortificados e guetos favelizados
Muitos dos temas abordados convergem para essa “dinâmica de desintegração suicida na qual estamos metidos”. É assim que se vai desenhando uma oposição fundamental (submetida, entretanto, a outra oposição que a abrange, e sobre a qual falarei adiante) entre “enclaves fortificados” e “guetos favelizados”, a desenhar o programa de cidades que abrigam um princípio de exclusão recíproca, cujo recalcado, condenado a um eterno retorno, é a violência. Exemplos desses bunkers autossuficientes são tanto o Parque Cidade Jardim e a Daslu quanto o paraíso (?) artificial de Dubai. Do primeiro, Wisnik resume a ideologia como sendo uma espécie de “manifesto de classe”, que reivindica “uma cidade mais habitável, humana” (as palavras são do próprio texto de apresentação do Parque), isto é, murada, classialmente eugenizada, configurando esse novo tipo de vontade de emancipação, não mais regional, étnica, mas segmentada, puramente classial.
Do mesmo modo, a Daslu é cirurgicamente intepretada, em ensaio antológico, desde a inconsistência material de seu pastiche neoclássico, que banaliza e falsifica (ou farsifica) o referente histórico, situando-a “na retaguarda do mundo fashion”, até o helicóptero preto que, ao fim de seu percurso ascensional interno, esclarece-o, numa “insinuação clara: a cidade é uma contingência. Deve ser saltada, sobrevoada, subtraída”. Um tanto distante, e ainda um tanto mais próxima (já que as cidades tendem a “minimizar suas antigas particularidades de formação histórica”, e assim, “no limite, uma cidade como Tóquio, por exemplo, terá muito mais afinidade com Nova Iorque ou Londres do que com qualquer outra cidade japonesa”), Dubai, irmã das cidades Daslu e Jardim, é revelada em todo seu potencial de ícone definidor do mundo contemporâneo, uma espécie de Michael Jackson das cidades. Situada num ponto médio entre o Ocidente e o Oriente, trata-se de um “estado-empresa” que, “consciente de que as reservas de petróleo vão se esgotar, passou a investir em valor ‘perene’: o turismo de luxo”. Uma tal cidade ilhada, como as demais, é sustentada pela imensa parte barrada: uma mão de obra semiescrava, a lembrar que “os Emirados Árabes representam a apoteose dos valores neoliberais potencializados pelo despotismo oriental, pois desenvolveram o sistema mais ‘avançado’ do mundo em matéria de privação dos direitos trabalhistas”.
Dois paradigmas
O livro é estruturado em quatro partes. A primeira é irmã da terceira, ambas pensando as cidades. A segunda reúne “resenhas e efemérides”, e é diferente das demais porque destituída daquele caráter transicional que identifiquei no início, embora, quanto à capacidade de visão – mesmo que seus objetos não pertençam à discursividade principal do autor (a arquitetura), que aí aborda o futebol, a canção, o teatro etc. –, nada deva às outras. Essa parte, distensionada, de certo modo, da realidade (mas só de certo modo, porque essa tensão retorna internamente às formulações das obras analisadas), é por isso mesmo de tom mais afirmativo, mais dedicada à beleza e às construções complexas e iluminadoras de sentido. A quarta e última parte contém ensaios mais longos sobre determinadas obras (Niemeyer, Siza e Paulo Mendes da Rocha), um ensaio sobre as relações entre arte e arquitetura e, finalmente, uma entrevista reescrita. Nela, muitas das ideias aparentemente desconexas ao longo do livro encontram seu ponto de fuga, ao mesmo tempo em que se ativa um mecanismo autoconsciente que as identifica e problematiza segundo essa perspectiva geral.
Tais ideias vão formando dois paradigmas. O primeiro é aquele com que o autor parece se identificar mais, e que agrupa os apelos em favor de uma “visão estratégica” da cidade, de “resgatar o papel propositivo dos arquitetos em face à informalidade sem contorno das atuais metrópoles”, de uma renovação da infraestrutura urbana “segundo uma orientação desejada e exemplar”. Contra, portanto, “o isolamento mais comum dos arquitetos nos códigos internos de seu métier”, as formas alienadas de suas situações, as causas pseudoengajadas que revelam um escapismo de fundo, como a moda da arquitetura sustentável, nada mais que “um modo de manter o laissez-faire capitalista, dando-lhe um verniz politicamente correto”. Nessa série estão os ideais de racionalidade, clareza, planejamento, integração social, maior ação do Estado etc.
Ocorre que, como está escrito na orelha do livro com profunda pertinência, trata-se de um autor “radical e lúcido”. Daí que aos poucos vai se insinuando ao longo dos textos uma série que se opõe à anterior, e que não é evocada para reforçar os argumentos da primeira, mas para tensioná-los, relativizá-los e, no limite, suspendê-los. Daí a lucidez da radicalidade do autor, que sabe desterritorializar suas próprias ideias, engrandecendo-as e complexificando-as, sem que com isso elas se tornem amorfas ou aporéticas. Essa segunda série adentra o livro fundamentalmente por meio do pensamento do arquiteto holandês Rem Koolhaas, a que o autor parece reagir com um misto de admiração, desconfiança e perplexidade. Egresso do chamado movimento desconstrucionista em arquitetura, Koolhaas interessa-se em compreender precisamente os resíduos do planejamento, os “espaços-lixo” da cidade, seus “não lugares” (a expressão não é dele, mas se encaixa bem em sua perspectiva), seu resto, em suma, que no entanto se converte em seu sumo, o resto em rosto, o não ser em ser, definindo sua essência, em vez de seu ponto de falta. É assim que Koolhaas percebe, na waste land de Lagos, na Nigéria, um “mercado efervescente”; em Dubai, “o foco de uma convivência fusional entre culturas diametralmente distintas”; e, na rica Manhattan, “uma cidade que se construiu por si mesma”, à revelia do desenho dos arquitetos.
É interessante observar que, de certo modo, a perspectiva de Koolhaas se alinha à perspectiva de José Miguel Wisnik, pai de Guilherme. José Miguel ativa um olhar transvalorador, dentro da cultura brasileira, para o que nela surgiu do resto, do resíduo da empresa capitalista transnacional, e, desse informe, dessa informalidade, soube produzir uma forma original. Ao mesmo tempo, seu pensamento deixa-se tensionar pela sociologia paulista, que enfatiza a dimensão formal e macroestrutural da questão. É como se, portanto, pai e filho tivessem movimentos dialéticos opostos e complementares. No que diz respeito a Guilherme, não lhe interessa “fechar a questão”, pois para ele a verdade “aparece menos na defesa de cada posição do que no efeito de fricção causado pelo choque entre elas”.