Cinema ou um espelho distorcido da realidade
Alex Hibbert e Mahershala Ali em cena de Moonlight (Foto: Divulgação)
Basta haver abertura no mercado audiovisual para que profissionais historicamente à margem da indústria cinematográfica possam contar suas histórias
Quem você vê quando se olha projetado no espelho? E quando sai na rua, você consegue se perceber no lugar dos outros? Consegue ver um pouco dos outros refletido em você? A pergunta é quem são os outros e quem somos nós, visto que devemos reconhecer a história como plural para não incorrermos no perigo de uma história única, como propõe a escritora Chimamanda Ngozi Adichie [veja abaixo]. A isto se denomina empatia, uma palavra muito necessária em tempos de colapso de sistemas e instituições referenciais, dentro de uma lógica contemporânea em que a era da internet aproximou as pessoas na mesma medida em que as afastou, criando simulacros de sentimentos que só existem em bolhas irreais, como teorizou Jean Baudrillard. Pois um dos meios de comunicação onde melhor podemos analisar todos os reflexos sociais de nossos tempos decerto são as mídias audiovisuais. Como exemplo maior e bem-sucedido há o cinema, que gera uma catarse mútua: não apenas para quem assiste, mas igualmente para quem realiza. Se quisermos existir no espelho da realidade que a projeção na tela grande nos mostra – e isso é uma responsabilidade simultânea tanto do espectador em se exigir representado, quanto dos realizadores em buscar representação -, a quais reflexos dessa grande variedade humana estamos de fato assistindo?
Como uma das indústrias de maior alcance mundial, a sétima arte andou de mãos dadas com a globalização como um caminho para chegar às mais variadas pessoas, mas não necessariamente o mais democrático. Seja o valor do ingresso nas vias oficiais ou a falta de diversidade de representação nos filmes, esse fenômeno se deve também ao fato de o cinema refletir sobre a potência do devir econômico de quem o faz, assim como de sua distribuição. Mesmo com o aumento da acessibilidade tecnológica dos meios de produção, onde quase todos possuem celulares com câmeras aptas a filmar, não é todo filme que, após finalizado, é assistido. E todo ano, quando se aproxima a época de uma das maiores premiações em que se pretende avaliar os filmes que teriam se destacado no ano anterior, como o Oscar, há de se fazer uma baliza não apenas da qualidade, mas de acesso e paridade de representação a serem considerados nestas obras.
Muito foi debatido nas edições anteriores da Academia de Ciências e Artes Cinematográficas sobre a total ausência de candidatos negros nas principais categorias, e não só, mas também de asiáticos, orientais e indígenas, assim como mulheres e LGBTQ+ ou demais diversidades que o padrão hegemônico de produção hollywoodiana não costuma notar ou contabilizar. O ano de 2017, por consequência, foi marcado por indicações recordes de candidatos negros em praticamente todas as categorias, levantando o questionamento sobre uma possível mudança estrutural dos tempos ou se foi apenas uma resposta impulsionada por ações reivindicatórias realizadas em 2016, como o #OscarSoWhite.
Todavia, para não se encerrar em uma reação pontual, é necessário que a sociedade e, principalmente, os votantes desta premiação façam parte da mudança. Isso implica em se libertar da homogeneização ditada pelo marketing de massas e dirigismo de bilheterias, como também estimular que se veja o mundo refletido de forma mais plural nos filmes, dando mais acesso a todos os públicos. E, infelizmente, o que se vê ainda é um espírito leigo e desagregador deslocado de uma reflexão mais complexa, que não sabe (ou não quer) analisar o mercado quando ele toma novos rumos.
As indicações deste ano se viram, pela primeira vez em muito tempo, sob um pesado julgamento, por vezes carregado de noções preconceituosas. Um ótimo exemplo de como Hollywood construiu uma imagem fragmentada e enviesada sobre a sociedade americana pode ser visto em Eu Não Sou Seu Negro, do haitiano Raoul Peck, indicado neste ano na categoria documentário. O filme usa as palavras do escritor James Baldwin, que em 1979 iniciou seu último livro Remember this house, para narrar como o racismo foi interiorizado naquela sociedade por meio do próprio cinema em sua forma de retratar seus personagens. Há uma diferença crucial em como Hollywood tende a categorizar os filmes como produtos para inseri-los no sistema, confundindo realizador com o recorte que ele realiza, gerando fórmulas equivocadamente generalizantes.
Hidden Figures (que no Brasil ganhou o estranho título Estrelas Além do Tempo), um dos concorrentes ao prêmio principal do Oscar deste ano, usa enormes artifícios para suavizar o racismo que está na base da sociedade americana – e da nossa. Nas palavras do professor e crítico de cinema Heitor Augusto, é preciso “tolerar muitos equívocos de roteiro e construção da narrativa” a fim de vermos um filme baseado na história verídica de mulheres negras que foram invisibilizadas pelos engenheiros brancos da NASA na época da corrida espacial. Certamente, essa mesma história, que precisava ser contada, seria mostrada de outra forma se o filme fosse dirigido por uma pessoa negra.
Mas Hollywood faz nenhuma ou pouquíssima concessão, como podemos perceber ao assistir ao documentário de Raoul Peck. Enquanto os indicados e os premiados ainda forem os mesmos rostos, formados por homens brancos quase sempre de elite, ancorados numa heteronormatividade, movimentos de reação como o do #OscarSoWhite farão ainda mais eco. Como se comprova pelos dois candidatos que eram favorito ao prêmio principal: um embebido em jazz, mas cujo casal de protagonistas é branco (La La Land de Damien Chazelle); e outro com elenco predominantemente negro e linguagem experimental inovadora (Moonlight, de Barry Jenkins), que mesmo perdendo favoritismo ante a sombra de não referenciar os maiores musicais da Hollywood clássica predominantemente branca, acabou vencendo na maior reviravolta que o Oscar já viu.
O prêmio de melhor filme foi anunciado para La La Land e, só após quase todos os agradecimentos de seus produtores, percebe-se uma confusão no palco que aponta o erro da produção do evento, entregando a estatueta dourada ao real vencedor: Moonlight. Isso diminuiu o tempo em palco dos ganhadores de forma inglória, pois o sensacionalismo do acontecimento ofuscou e até botou em dúvida, por alguns, o mérito da vitória. Justamente do representante de menor orçamento na história do Oscar e primeiro eleito com protagonista LGBTQ+, além de uma equipe composta em sua maioria por pessoas negras. Uma falsa sensação de “empate técnico” de La La Land e Moonlight nos leva à seguinte reflexão de Ruth Frankenberg: “A branquitude é como um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo, uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não se atribui a si mesmo”.
Se fizermos um recorte ainda maior sobre a falta de diversidade, envolvendo também a questão de gênero, veremos que nenhuma cineasta mulher sequer foi considerada para o prêmio de melhor filme e direção neste ano. E não foi por falta de candidatas – havia inclusive duas favoritas com filmes indicados em outras categorias, como Ava Duvernay com seu documentário A 13ª Emenda, e Maren Ade, por seu filme em língua estrangeira Toni Erdmann. Vale lembrar que até hoje na história do Oscar apenas um longa dirigido por mulher ganhou a estatueta de melhor filme e melhor direção, Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow, em 2010. Já na categoria de filme em língua estrangeira somente outras duas mulheres em 88 anos tiveram seus filmes laureados: Marleen Gorris com A Excêntrica Família de Antônia, em 1996, e Caroline Link com Lugar Nenhum na África, em 2003. São exemplos bastante pontuais e que não revelam uma real abertura da Academia na recepção destas obras.
No Brasil, o cenário não é muito diferente. De acordo com relatório publicado em janeiro de 2017 pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE), dos 143 filmes brasileiros lançados em circuito comercial em 2016, apenas 29, ou seja 20,3%, foram dirigidos exclusivamente por mulheres. Se fizermos um recorte observando a cor das pessoas que conseguiram efetivamente realizar, finalizar e distribuir seus filmes, essa realidade é ainda mais triste. De acordo com pesquisa divulgada em 2014 pelo GEEMA (grupo de estudos do IESP/UERJ), que analisou quem dirigiu os longas-metragens brasileiros de maior bilheteria lançados entre 2002 a 2012, apenas 13% foram dirigidos por mulheres, além da total ausência de mulheres negras.
Curioso notar que mesmo com uma produção ainda reduzida em termos quantitativos em relação aos filmes realizados por homens, as mulheres têm conseguido em 2017 uma maior inserção em festivais que tradicionalmente abarcam e experimentam maior diversidade de narrativas fílmicas. Exemplo recente ocorreu no 67º Festival Internacional de Cinema em Berlim onde, dos doze filmes brasileiros selecionados (um recorde em termos quantitativos), metade foi dirigido ou codirigido por mulheres. Porém mesmo nos festivais em que se percebe maior abertura à diversidade em termos de representatividade, ainda assim apenas cinco mulheres conquistaram o prêmio máximo da Berlinale nos seus 67 anos de existência, um pouco mais do que o Festival de Cannes, que até hoje apenas entregou a Palma de Ouro a uma única diretora, Jane Campion por O Piano, em 1993 – prêmio que foi dividido com o cineasta chinês Chen Kaige por Adeus, Minha Concubina.
Basta haver uma abertura no mercado audiovisual para que esses profissionais historicamente à margem possam contar suas histórias. Com essa inserção, é possível que outras narrativas cheguem ao público, outros argumentos, outros pontos de vista, outras formas de fazer cinema a fim de ampliar e diversificar a nossa experiência e, portanto, o nosso reflexo no espelho. O cinema sempre foi um dos muitos instrumentos de propagação e difusão de ideias, utilizado inclusive por vários regimes ditatoriais, mas é preciso não perder de vista que sua maior qualidade é justamente proporcionar a reflexão crítica sobre a realidade. E isso raramente acontece em filmes destinados ao consumo das massas, numa concepção equivocada sobre escapismo que acaba na maioria das vezes por reforçar estereótipos preconceituosos. Os filmes que geralmente figuram nas principais categorias da corrida do Oscar raramente fogem dessa premissa, como um espelho distorcido da realidade.
Samantha Brasil é cientista social, mestre em Sociologia e Antropologia (PPGSA/UFRJ), crítica de cinema, curadora do Cineclube Delas no Tempo Glauber, fundadora das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema, colaboradora do Delirium Nerd, integrante do Podcast Feito por Elas e da #partidA.
Filippo Pitanga é advogado e jornalista, crítico e professor de Cinema na Academia Internacional de Cinema (AIC-RJ) e na Escola de Filosofia Passagens, editor-chefe do Almanaque Virtual, membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), e curador do Cineclube Ação e Reflexão no Tempo Glauber.
(1) Comentário
Ótimo artigo. Parabéns aos dois. Vou repassar para alguns amigos. Abraço