Conhecer pode ser destruir

Conhecer pode ser destruir
O artista Cildo Meirelles em junho de 2016 (Foto: Matías Rossi/MACBA, 2016)

 

O título acima nomeia uma das cento e cinquenta obras de Cildo Meireles em Entrevendo, exposição que está no Sesc Pompeia e cuja bela curadoria foi realizada por Diego Matos e Júlia Rebouças. Mas aqui o título revela também um modo possível de movimento em direção à monumentalidade da obra desse prodigioso artista. Aproximar-me destruindo será minha tentativa de explorar o enorme conjunto de produções, sem que antes de fazê-lo sucumba frente à árdua tarefa. Conhecer destruindo implica certos cortes abruptos no material examinado, escolhas aparentemente arbitrárias por um ou outro elemento da coleção e infidelidade à concatenação que supostamente alinhava uma peça à outra.

Um único critério passa a orientar, então, as irregulares inclinações por algumas obras em detrimento de outras: a vibração de meus afetos. Ou seja, trata-se de dar vazão ao que dali fez pulsar meu corpo, convocou pensamento e memória, clamou por maior elaboração reflexiva. São esses os ingredientes que permitirão alguns mergulhos na enorme densidade e na vasta pluralidade de meios, materiais, artifícios, problemas, referências e intenções evocados pelo artista. Destruir para conhecer é aqui uma saída singela, já que seria impossível abarcar a totalidade do que está em exibição no Sesc Pompeia até dia 02/02/2020.

Por esse critério, Sal sem carne foi a primeira obra a atingir meus sentidos. Partamos, pois, do título da obra. O termo salário é oriundo da porção de sal dada como pagamento aos soldados na Roma Antiga. Para os romanos, o sal era divino, dádiva de Salus, deusa da saúde. Cicatrizava feridas, conservava a carne e era tempero para o alimento. Na antiguidade, servos cultivavam a terra dos nobres em troca de proteção e subsistência. Servos não eram propriedade do senhor feudal. Eram homens ligados ao solo, parte do lote de terra negociada entre senhores feudais. Só as corporações de ofício introduziram a prática de um trabalho livre, cujos produtos podiam ser vendidos no mercado. A venda do tempo de trabalho em troca de salário surge apenas no século 14, com o declínio do poder feudal. Somente no capitalismo o trabalhador passa a vender sua mão-de-obra e seu tempo de atividade como produtos no mercado.

Os índios, porém, não estão em nenhum desses registros de trabalho da história do Ocidente. Pertencem ao que Cildo Meireles compreende por gueto, isto é, “lugar de invisibilidade territorial, política e cultural que conforma uma situação segregatória” (Matos e Rebouças). Habitam “zonas invisíveis” e são pontos cegos na lógica capitalista. Corpos estranhos sem quaisquer contornos simbólicos ou sagrados compartilhados por tal lógica. Opacos às categorizações e articulações socioculturais ocidentais, a carne do índio está sempre exposta, sem o sal que conserva a vida. Carnes feridas, sem condições de cicatrização desde a colonização de nossas terras. Destituída da película salgada que a integraria como parte da humanidade, essa carne é abatida sem dó nem piedade pelos interesses fundiários e mineradores.

Sal sem carne resgata o massacre dos índios craós, ocorrido em 1940 na cidade de Trindade-GO. Convoca o espectador ao paradoxal esforço de construir uma memória. Apela por uma espécie de registro das marcas do que ainda persiste invisível. Súplica que, porém, não é estridente. Sua força reside na delicadeza poética. Composta por um singelo cabide amarelo de madeira repleto de monóculos azuis e vermelhos, além de um vinil no qual estão gravadas vozes e palavras sobrepostas, a obra nos convida a alongar a vista para a recepção de imagens e a aguçar os ouvidos para a escuta de sonoridades híbridas. Que do empenho, porém, não se espere alcance automático à clareza. Cada imagem visada traz uma infinidade de incertezas, dúvidas, perguntas sem respostas. Os hiatos entre os monóculos e, por conseguinte, entre as diferentes imagens expostas pedem composições narrativas. O caráter diminuto e a distância das fotos em relação ao olho impedem a satisfatória sensação de domínio e compreensão dos objetos. O aspecto difuso das imagens torna-se, assim, espécie de isca estratégica para que o receptor da obra trabalhe para além delas.

Os sons sobrepostos não destoam da oferta de imagens. Vozes de índios mesclam-se com depoimentos e músicas caipiras, além de outros murmúrios indecifráveis: “o que é índio?”, “é uns homi selvagem que comi raiz”, índio “só fica assim, pelas conta do mato”, “índio é gente”, “Brasília”. Soltas, essas palavras e falas tocam as entranhas do Brasil que alguns insistem em apagar, soterrar, aniquilar.

O vinil e as imagens colocam lado a lado figuras que bem poderiam ser tidas como díspares: o louco e o índio. Como mostra Foucault, a loucura é construção moderna. O índio, por outro lado, aparece aos olhos ocidentais numa fisionomia anacrônica, pertencente a um tempo que destoa da modernidade. Sal sem carne reúne a ambos como índices do não-lugar. Ao massacre dos índios craós em Trindade junta-se a instituição católica destinada aos loucos Vila São José Bento Cottolengo. Tradições cristãs estabelecem fronteiras entre bem e mal, ímpio e devoto, justo e injusto, servidor e traidor de Deus, e concedem as balizas políticas, econômicas e sociais da cidade. Numa linha indefinida entre esses conceitos, no que só pode ser entrevisto pelas brechas, estão os índios e os loucos. Estremecem nossas verdades, sacodem nossas teorias, abalam nossas certezas. Tornam-se alvos pela presença de seus corpos que afirmam o direito de existência na incerteza de um espaço volátil.

É evidente a afinidade entre Sal sem carne e Missão/Missões (como construir catedrais). Montada pela primeira vez num formato circular, a obra conjuga elementos materiais e simbólicos numa contundente exposição da violência praticada pelos jesuítas europeus no processo de colonização das Américas. Dois mil ossos compõem o teto da instalação e ligam-se por uma frágil coluna de hóstias ao chão. Neste, seiscentas mil moedas aparecem dispostas, indicando a base sobre a qual se sustenta o extermínio dos índios. Se por um lado Sal sem carne e Missão/Missões se aproximam, de outro se afastam. O forte impacto causado pela instalação suprime reflexões, devaneios, dúvidas e palavras. Obra que fala por si e torna-se monumento de uma história composta por massacres, opressões e violações. Ao invés da profusão de perguntas suscitadas em Sal sem carne, o visitante emudece diante de Missão/Missões.

Ao lado de Missão/Missões está exposta Amerikkka, outra obra que sobrepõe ao potente efeito dilacerante uma fina camada poética. Os três Ks presentes no título são uma clara referência ao grupo racista Ku Klux Klan. A parte superior da instalação é composta de 70 mil projéteis de dois calibres. Balas que expõem a tática da supremacia branca de extermínio à população negra americana. No chão estão enfileirados ovos de madeira sobre os quais o visitante pode pisar. No catálogo, Diego Matos e Júlia Rebouças sugerem uma irônica alusão do artista à metáfora proverbial do ovo de Colombo – a façanha dizimadora do explorador europeu. Numa outra linha de fuga, é possível pensar que os ovos apontam para a força da resistência. Vistos à distância, esses ovos brancos parecem reais. Duvida-se da viabilidade de sobre eles caminhar. Frágeis, não suportariam nem o primeiro passo. Assim que neles se coloca os pés, contudo, torna-se impossível dar mais de dois passos. Os ovos são duros e pontudos e provocam uma dor insuportável nas palmas dos pés. O poder das balas encontra matéria difícil de ser perfurada e destruída. Numa vertente simbólica, o ovo representa vida e aqui ela não é tão indefesa quanto parece ao primeiro lance de olhos.

Espaços virtuais: cantos, Espaços virtuais: paredes e Cantos são a edificação dos projetos desenhados e expostos na primeira sala. Decisão inteligente dos curadores que, ao separar os projetos da obra de sua versão concreta, não entregam o ouro facilmente ao visitante. Nos desenhos somos confrontados com a complexidade do pensamento de Cildo Meireles e com a precisão técnica que assumem suas intenções. Observá-los demanda trabalho concentrado. Tão logo se ingressa na ala onde estão as peças erguidas, a sobriedade dos desenhos dá lugar à fantasia e à brincadeira.

Entrever cantos e curvas onde nosso repertório imaginário precipita-se em antever apenas a monotonia das paredes subverte a noção convencional da espacialidade e abre uma racionalidade inusitada. Se os guetos são lugares aos quais os marginalizados são relegados, Cildo Meireles faz ver que espaços que escapam da lógica prescrita como sistema têm graça, inteligência, colorido, alegria, gozo e jogo. Explorar inesperados e inusitados cantos e curvas de afetos, reflexões e raciocínios é o convite que o conjunto das obras do artista faz a todos nós.

 


ALESSANDRA PARENTE é psicanalista, Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Recentemente fez seu pós-doc na FFLCH-USP com estágio na Birkbeck, University of London

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