O cientista e o ornitorrinco

O cientista e o ornitorrinco
“Jogo da cabra-cega”, de George Morland (Imagem: Reprodução)

 

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Sim, a cientista – e seu marido – interpretou os psicanalistas, assim como Paul Preciado fizera alguns anos antes. Em dezembro de 2019, eu estava em Paris na famosa fala de Paul Preciado nas jornadas da École de la Cause Freudienne. Ali, de sua posição de homem trans, ele se apresentou – palavras dele – como um monstro, uma aberração aos olhos daqueles psicanalistas. Ao me dar conta do desconforto e indignação crescente entre os mais de três mil presentes, imediatamente percebi que ele havia interpretado a audiência. Para mim foi uma interpretação necessária, mesmo discordando de seus argumentos. Lembro de uma anedota: Freud caminhava com um amigo escritor e disse para ele: “Você é o maior escritor vivo da Alemanha”. O amigo retrucou: “Não, não, não!” E Freud retorna: “Bastava um não”.

Algo similar ocorreu agora com o affair Pasternack-Orsi. Como é próprio da estrutura do discurso histérico, ela e ele colocaram a comunidade psicanalítica para trabalhar, desbancando o mestre. O livro Que bobagem! pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério não me causou o mínimo arrepio, espero apenas que ela seja melhor pesquisadora em “sua” ciência do que pesquisadora da psicanálise, e seu marido melhor jornalista. Mas o livro não traz nenhum aporte novo, nenhum “furo” jornalístico, apenas suas sinceras opiniões. Reconheço a coragem, apesar de achar que o livro trata temas seríssimos como a crença, a clínica do caso único ou a subjetividade, que impedem que os métodos científicos consigam aferir o inconsciente, como charlatanismo. Também não levou em conta que o maior risco entre as pseudociências vem justamente da aliança entre as neurociências, as TCC (terapias cognitivo-comportamentais) e a indústria farmacêutica, que com seus diagnósticos duvidosos fizeram com que mais de 10 milhões de crianças nos Estados Unidos tenham tomado Ritalina em 2012 no auge do boom do diagnóstico de TDAH.

É preciso dizer que uma das contribuições da psicanálise para o mundo em que vivemos é, precisamente, mostrar que o dispositivo racional da ciência não esclarece todos os aspectos do humano, sempre fica um resto intratável. Até mesmo porque a ciência não comanda o mundo, ela pode apenas iluminar direções. Mas a pulsão de morte faz com que o homem, mesmo bem esclarecido, não necessariamente escolha o melhor. Um fumante pode chegar à banca e pedir um maço de cigarros, pouco importando se em seu verso verá a foto de uma gangrena ou de uma impotência, ou mesmo brincando de escolher um ou outro efeito colateral! E essa é justamente a angústia dos cientistas: querer que sua verdade seja reconhecida por todos. Digo isso de muito próximo, já que sou casado com uma cientista da Fiocruz, minha filha é uma cientista na USP e meu melhor amigo, meu irmão, foi presidente da Sociedade Brasileira de Genética. Costuma circular entre cientistas que são perfeitamente conscientes dos limites da ciência para lidar com as humanidades. Muitos cientistas equacionam sua angústia acreditando em Deus, outros equacionaram fazendo análise. Tenho inúmeros cientistas de ponta entre meus analisantes. Mas, assim como Napoleão dispensou o Papa e se coroou a si mesmo decretando que era imperador, alguns cientistas se sentaram no trono e se declararam donos da verdade, o que faria corar qualquer epistemólogo sério.

Contudo, a pandemia nos ensinou que, por mais que os cientistas bradassem, uma enorme parte da população – e não apenas a brasileira – não acolhia suas determinações. E por quê? Porque nossas ações incluem o inconsciente, que não mostra facilmente sua cara. Aquele que diz conhecer seu inconsciente não conhece português, pois tudo que ele conhece é consciente. Contrariamente a uma medicina que almeja transformar o humano em algo inteiramente legível e transparente, a psicanálise é uma medicina baseada em não evidências.

Mas a religião, a política e, mais recentemente, as massas nas redes sociais, estas sim, são capazes de mudar o mundo, para o melhor e o pior. Assim, a aspiração de uma psicologia científica que não inclua o amor de transferência é, no mínimo, uma ingenuidade, pois acredita que o homem esclarecido estará liberto de suas paixões e de suas crenças. Evidentemente, psicanalistas também têm suas crenças. E é nesse ponto que a sra. Pasternak e o sr. Orsi nos interpretaram. Pergunto por que tanta gente se precipitou na defesa da psicanálise afirmando: “Não, não, não!”. Pois bastava um “não”.

Minha opinião é que Que bobagem! tocou em uma ferida que, após Freud, em sua árdua tarefa de obter o reconhecimento de seus pares cientistas, julgávamos cicatrizada. Os excelentes textos de muitos colegas em defesa da psicanálise não eliminam a constatação de que a formação do psicanalista carece de um preparo para enfrentar o debate. Sempre me lembro das palavras de François Regnault, professor de psicanálise na Universidade de Paris 8. Ele dizia que toda vez que assistia em uma mesa de congresso ao debate entre psicanalistas e neurocientistas, ele encontrava um cientista extremamente preparado, munido da certeza e da empáfia de seus dados, de um lado, e um psicanalista mal preparado, que apenas sabia recitar Freud e Lacan, do outro. Era o encontro perfeito entre o sádico e o masoquista! As paixões sobre este tempo não datam de hoje.

Organizado pela psicanalista Marlène Belilos, juntamente com François Ansermet e Jean-Daniel Matet, o livro Freud e o prêmio Nobel: uma história impossível [em tradução livre] narra a saga dos apoiadores de Freud para que ele ganhasse o prêmio. De 1915 a 1938, Freud foi indicado para o prêmio 13 vezes. Entre os proponentes, encontramos nomes de peso, como Stefan Zweig, Romain Rolland e Marie Bonaparte. A autora buscou incessantemente ter acesso às atas do Comitê Nobel de Medicina, mas só conseguiu acessar as justificativas para que ele não ganhasse o prêmio em arquivos que encontrou na Biblioteca do Congresso Americano, em Washington. As respostas de 12 destas indicações ao Nobel de Medicina esbarravam na crítica de que a obra de Freud era mais literária do que científica. Curiosamente, na décima terceira tentativa, ele foi indicado para o Nobel de Literatura, e a resposta foi que a obra era muito mais médica do que literária. Ou seja, se Preciado é um monstro, Freud era o ornitorrinco.

O livro ladra, e a psicanálise passa. Mas ele teve o mérito de nos despertar e perceber que cada psicanalista, já formado ou em formação, precisa se preparar melhor para os debates futuros.

Marcelo Veras é psicanalista, psiquiatra e professor. Atualmente é coordenador do Programa de Saúde Mental e Bem-Estar da UFBA. Seu mais recente livro é A morte de si: psicanálise e suicídio (Cult, 2023).


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