“Chegou a hora de voltar para casa”

“Chegou a hora de voltar para casa”

MARÍLIA KODIC

Mais de três décadas após ter seus direitos comprados por Francis Ford Coppola, a bíblia beat de Kerouac finalmente é levada às telas por um brasileiro. A seguir, Walter Salles, que já tem em seu currículo filmes aclamados como Central do Brasil (1998) e Diários de Motocicleta (2004), fala à CULT sobre como chegou ao roteiro final de Na Estrada e o que a história representa no cenário atual.

Salles também fala sobre a parceria com Coppola, o porquê de ter escolhido Kristen Stewart para o papel de Marylou e o futuro dos chamados ‘filmes de estrada’, além do desejo de voltar para o Brasil: “um cineasta tem que ficar próximo de suas raízes para ter o que dizer”.

CULT – Na primeira vez em que você leu On the Road, nos anos 1970, o modo de vida e atmosfera retratados por Jack Kerouac eram algo desconhecido no Brasil. Como se relacionou com a obra na época, e o que mudou nessa relação desde então?

Walter Salles – O Brasil de meados dos anos 1970, em pleno regime militar, era a época das perseguições políticas, a censura dos jornais, das artes, das mentes. O livro era o contra campo disso, uma busca desenfreada por todas as formas de liberdade.

Hoje continuo achando que ele funciona como um antídoto para essa ideia burra de viver tudo à distância, por procuração. Em Na estrada os caras vivem tudo na pele, cada momento podendo ser o último.

Por que sentiu necessidade de realizar um documentário com sobreviventes e admiradores do livro antes de rodar o filme?

Eu não teria feito o filme sem passar pelo documentário. Ele nos permitiu encontrar os personagens do livro que estão vivos, nos possibilitou encontrar vários poetas da geração de Kerouac que formaram o movimento Beat, além de artistas que foram influenciados pela obra do escritor.

A cada uma dessas pessoas, nós perguntamos qual era o filme que eles gostariam de ver baseado em On the Road. E, para cada pessoa, havia uma resposta diferente, o que dá uma ideia da dificuldade da empreitada. Foi um processo fascinante, que nos alimentou o tempo inteiro.

O livro foi lançado numa época de censura sob a patrulha anticomunista de McCarthy, representando uma revolução na cultura americana. Como a história se liga aos dias atuais, em que vive-se uma espécie de dormência nesse sentido de revolução estrutural do comportamento?

Talvez estejamos longe da fome de liberdade dos personagens de Na Estrada hoje em dia, mas existe uma inquietude própria à juventude que não se apagou.

Ao contrário, é possível sentir isso em latitudes diferentes, da Primavera Árabe a movimentos na Espanha ou nos Estados Unidos. O desejo de se viver a pleno transcende gerações.

Como Francis Ford Coppola o abordou para convidá-lo a dirigir o filme, e como foi a parceria com ele?

O convite aconteceu logo depois da estreia de Diarios de Motocicleta no festival de Sundance, em 2004. Um dos diretores da Zoetrope, a produtora de Francis Ford Coppola, viu o filme e tivemos um encontro para falar de On the Road.

Nesse momento, conheci Roman Coppola, filho de Francis, que foi um grande parceiro de viagem. Falamos da nossa paixão comum pelo livro.

Por outro lado, aquele universo pertencia a uma cultura que não era a minha, e por isso o pedido de fazer um documentário que saísse em busca não só do livro e do legado de Kerouac, mas também de um filme possível baseado em On the Road.

A Zoetrope aceitou a ideia e passei vários anos trabalhando nesse projeto, entrevistando os personagens do livro que estão vivos, os poetas contemporâneos de Kerouac que fundaram com ele a geração Beat, e conversando com músicos e cineastas que foram influenciados por aquele movimento.

Francis e Roman Coppola dividiram comigo as várias versões dos roteiros escritos desde que American Zoetrope comprou os direitos do livro em 1979, e também me mostraram os testes de elenco realizados com jovens atores naquela época.

Em uma carta escrita a Marlon Brando em 1957, Kerouac fala da vontade de transformar a obra em filme, citando desejos como “a câmera no banco da frente do carro mostrando a rua (dia e noite) estendendo-se pelo pára-brisas”. Em que medida, se é que alguma, você se baseou nessa carta para dirigir o filme?

Nessa carta, Kerouac diz que estaria pronto a concentrar as diversas viagens do livro numa só, se isso parecesse interessante a Brando. Se qualquer outra pessoa tivesse mencionado essa possibilidade, ela teria provavelmente sido considerada um sacrilégio. Nós seguimos as diferentes viagens do livro… já a estrada vista através do para-brisas do carro é uma imagem recorrente do filme.

Na época em que pensou em Kristen Stewart para o papel de Marylou, ela ainda era desconhecida. O fato de ela ser hoje associada à série Crepúsculo e fazer parte de um imaginário ligado à adolescência afeta a percepção do público sobre sua personagem?

A escolha de Kristen Stewart foi um acaso: encontrei com dois amigos, o compositor Gustavo Santaolalla e o cineasta mexicano Alejandro Iñarritu, que tinham acabado de ver a primeira montagem de Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, e me disseram: “Para Marylou, você não precisa procurar mais… há uma jovem atriz perfeita para o papel no novo filme de Penn”.

Vi o filme e concordei com os dois….. conheci Kristen, e ela me disse que Na Estrada era seu livro de cabeceira, e que sempre quis fazer o papel de Marylou. Era importante contar com atores apaixonados pelos seus personagens nesse filme, sabíamos o quanto a filmagem seria complexa, sempre em movimento.

Quanto à percepção da carreira de atores jovens, ela muda muito rapidamente. Kristen Stewart é uma atriz interessada em filmes independentes como o The Runaways ou o nosso. A minha impressão é de que ela vai saber equilibrar esses dois mundos.

Com cada vez mais centros urbanos e o crescente mapeamento digital de espaços, você sente que há um esvaziamento de sentido nos ‘filmes de estrada’? Como vê o futuro do gênero?

Essa implosão do tempo e do espaço está magnificamente representada em The World, filme do cineasta chinês Jia Zhang-ke. Isso não quer dizer que o movimento perdeu a sua razão de ser, que é a do desvendamento do mundo. E há filmes de estrada que vão além da crise existencial dos seus personagens.

Filmes de estrada sobre o deslocamento forçado de populações inteiras, como Jia Zhang-Ke filmou de maneira tão impactante em Still Life, renovam o gênero e continuam a nos fazer entender coisas que não imaginávamos.

Há alguns anos que os principais festivais internacionais de cinema não selecionam produções brasileiras para suas competições. Isso se deve a um problema no modelo brasileiro de financiamento?

Em primeiro lugar, é importante mencionar que estamos fazendo um dos melhores cinemas documentais do mundo. De Eduardo Coutinho a Flávia Castro, a safra dos últimos anos é de altíssima qualidade. Documentários são projetos de baixo custo, e por isso os diretores conseguem filmar com mais constância e liberdade do que na ficção.

Na ficção, o que não falta é talento. O problema é que o modelo precisa ser afinado, já que as principais fontes de financiamento estão endereçadas para os projetos que são mais claramente de mercado.

Argentina, México e agora Chile criaram mecanismos para alimentar cinematografias nacionais mais amplas, e por isso são constantemente visitados pelos principais selecionadores de Festivais.

Isso dito, a Ancine conhece bem a origem do problema e tem os instrumentos e a competência para reajustar o modelo brasileiro.

Você disse recentemente que não tem vontade de fazer dois filmes seguidos em inglês, e que pretende ‘voltar para casa’. Por quê?

Porque um cineasta tem que ficar próximo de suas raízes para ter o que dizer, a menos que decida viver em outro país e fazer parte de outra cultura. Não tenho esse desejo. Na Estrada é uma obsessão de juventude, um livro que li aos 18 anos e que mudou minha visão de mundo. O filme está feito. Agora, chegou a hora de voltar para casa.

(4) Comentários

  1. Lindo! Não existe beleza mais perfeita e interessante do que a inteligência e conteúdo.

  2. Pode até ser que finalmente ele tenha acertado, parando com o tradicional apelo sentimental que o caracteriza. Afinal, Coppola dificilmente aceitaria colocar seu nome em algo de baixa qualidade, mas Walter Salles não costuma ser uma boa pedida…

  3. Talvez,Marcelo esta englobando preconceitos.Quem fez Central do Brasil,merece respeito.
    Tentei colocar no meu livro- ~A fraude de Freud e o dr Cinema~que o cinema foi e ~e ,mais ciencia que a psicanalise, em ambos ha atransferencia,embora, talvez 50% da popolucao nao percebe e fica na Avenida Brasil

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