Chapados: sobre o uso abusivo da linguagem
Marcia Tiburi (Foto: Simone Marinho/ Divulgação)
A “sociedade do espetáculo” mostrou seu caráter de sensacionalidade em um sentido teofisiológico, como demonstrou Christoph Türcke em seu livro Sociedade excitada – filosofia da sensação (ed. Unicamp, 2011). Hoje, não somos mais apenas regidos por imagens, mas verdadeiramente dominados em nosso corpo, por meio de sensações que nos atingem de fora para dentro. O sistema econômico, ele mesmo uma religião com culto e ritual, nos comanda como um obsessor que tivesse se apoderado de cada um. Não é à toa que o exorcismo tenha se tornado um “serviço” em igrejas, da católica à neopentecostal, quando tudo continua a seguir a lógica da mercadoria que significa, sobretudo, que há, religiosamente, um preço a pagar.
O capitalismo descobriu o mundo da sensação e passou a reger a vida em sociedade, por meio da administração dos sentidos, de táticas de excitação. Vivemos, como ratos de laboratório, frangos criados sob lâmpadas, excitados pelo cinema e pela televisão que nos capturam e acomodam ao seu sistema. Em termos bem simples, vivemos ansiosos, nervosos, viciados em substâncias, desde drogas até deuses e ídolos e, sobretudo, loucos por emoções. Nas telas de celular, cultuamos a comunicação vazia, vivemos a emissão de expressão deturpada. Viciados em telinhas à mão, coisa que aprendemos com as grandes telas de cinema e televisão, sem consciência de que a excitação cura a excitação. A substância que nos tira a paz é a mesma que nos traz a paz, como nos ensina qualquer vício. Estresse digital será a doença do futuro.
A “sociedade fissurada”, em sentido filosófico, se define pela relação com o absoluto que se dá tanto por meio das drogas como substâncias físicas, quanto com Deus e outras ideias que se apresentam como substâncias metafísicas. Nesse contexto, estamos todos “chapados” porque, se estamos fissurados, isso quer dizer que, se havia algo, ele escapa pela fissura. Não temos como “reter” alguma coisa; por exemplo, nosso eu. Chapados, somos uma superfície plana quando antes éramos um organismo com alguma coisa dentro, quem sabe a alma.
O preconceito tem a estrutura de nossa relação com a substância, dependemos dele, ficamos como que viciados em ideias e discursos prontos que não passam pelo crivo da reflexão. Repetimos compulsivamente ideias prontas como quem busca o incomparável prazer da primeira vez. O prazer da linguagem que, desacompanhado de pensamento, não existe. Caímos no uso abusivo da linguagem como se ela não gerasse comprometimentos e responsabilidades. Ela serve a muitos como uma droga qualquer que promete recuperar o sentido perdido.
Como um grande platô por onde tudo escorrega, a sociedade atual tem um caráter chapado reproduzido em seus indivíduos. As “platitudes” fazem sucesso como mercadoria e serviços: da autoajuda às músicas e filmes da indústria cultural que nada dizem, todos estão apaixonados, emocionados com clichês. O procedimento de copy-paste é o que comanda o mundo da linguagem sem ideias que sustenta as redes sociais e a televisão. O sujeito da sociedade chapada é sem fundo e sem relevo, sem dobras nem reentrâncias. Um sujeito do “irrelevante” transformado em capital. A intimidade, a interioridade, a alma, que dependiam na ideia de profundidade, tornaram-se assuntos caducos. Só o estilo, o fashion, o cool definem seu sentido. Desatentos a esses acontecimentos, nos tornamos escorregadios. Deixamos para trás o caráter que, na era anterior, foi forjado a duras penas.
O consumismo torna-se o padrão de toda ação, até dos atos de fala. A reprodutibilidade sem fim de pensamentos vazios, de emoções e ações cuja função é apenas perpetuar o sistema, tudo o que possa evitar o questionamento – ele mesmo um perfurador de superfícies – é o que nos resta.
(7) Comentários
Em poucas palavras, muita reflexão.
“Caímos no uso abusivo da linguagem como se ela não gerasse comprometimentos e responsabilidades. Ela serve a muitos como uma droga qualquer que promete recuperar o sentido perdido.”
Discordo de Márcia Tiburi.
A linguagem em uso é um fenômeno histórico vivo, sujeito a evolução constante. Ela está sempre sujeita a sofrer as consequências das novas formas de transmissão. Da oralidade para a escrita, do registro em tabletes de barro e em pedra para o couro, do couro para o tablete de madeira recoberto com cera e deste para o papiro, do papiro para o papel, manuscrita e impressa, do papel para o universo digital em que a modalidade oral recupera toda sua força original por causa do vídeo. Imagino que os primeiros quando viram os primeiros tabletes de madeira recoberta com cera para escrita os romanos tiveram a mesma reação que Márcia Tiburi. Idem para os copistas medievais quando eles manusearam os primeiros livros impressos. A linguagem, em constante mutação ao sabor das novas tecnologias de registro e transmissão, nunca será confinada por decreto. Tampouco será domesticada por linguistas ou filósofos. Relaxa e goza, Márcia. Pois alguém vai gozar de você. Ups… Acho que já fiz isso.
Excelente artigo! Obrigada!
Muito bom o artigo. Tenho desenvolvido esta mesma posição, nuançada pela Antropologia da Performance. Obrigada!
Vou discordar de Fábio de Oliveira Ribeiro porque se é bem certo que a linguagem “evoluiu” das imagens desenhadas em tabletes de barro – usadas para comunicar objetos em transações comerciais lá na antiguidade – foi justamente ao soltar-se do fenômeno (aquilo que aparece) para adquirir a representação apenas fonética (conceitos) que ela evoluiu. Ou seja, evoluiu ao liberar-se da imagem oferecida por uma superfície qualquer.
O que Marcia Tiburi chama “linguagem desacompanhada do pensamento” é aquela que não permite a reflexão e a subjetivação.
A tecnologia é neutra mas o uso que fazemos dela, ao nos comunicarmos excessivamente via imagens, sim pode levar a uma perda intelectiva.
A linguagem imagética vem ganhando o terreno da linguagem reflexiva e isso não é característica de uma evolução, como Fábio diz. A reflexão não pode ser oferecida via imagem (sensorial), ela deve ser construída (racional). A questão do entendimento, portanto, não pode ser corporal. Mas é bem possível que dentro em breve só vá gozar e relaxar quem já não puder mais refletir.
Entendo …na verdade a busca pelo sentido da vida está ficando mais distante , na verdade chegamos no ápice do que o humano pode absorver…agora é o momento crescente de fuga para lugar nenhum…
Concordo com tudo, mas o texto podia ser mais direto. O próprio título “Chapados” remete a outra coisa, hoje em dia “chapados” está servindo mais para algo legal – porque traduz-se de “dope”, e a galera mais nova tem usado para falar de uma música, um filme, uma atitude bacana. Fala logo que as pessoas estão rasas.