Cerimônia de abertura, Cannes 2024
divulgação
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O Festival de Cannes, que em 2024 chega a sua 77ª edição, começou menos interessado na competição pela Palma de Ouro e mais voltado para reverenciar duas grandes divas do cinema. Meryl Streep, talvez a atriz mais premiada da história, aumentou sua coleção de troféus ao ganhar uma Palma honorária pela carreira. E Faye Dunaway, um dos ícones da Hollywood dos anos 1960 e 1970, apresentou na Croisette um documentário sobre sua vida e trajetória profissional.
Streep recebeu a honraria na cerimônia de abertura, no dia 14, mas ressurgiu na tarde desta quarta para um encontro com o público. Indicada 21 vezes para o Oscar e detentora de três estatuetas da Academia, a atriz estadunidense comentou alguns de seus papeis mais marcantes, falou de sua luta pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres em Hollywood e relembrou o trabalho com alguns grandes cineastas que a dirigiram.
Muito aplaudida, entrou no palco algo desconcertada, segundo ela por estar ainda de “ressaca” pelas doses a mais na comemoração do prêmio da noite anterior. Ainda assim, deu respostas em geral espirituosas e inteligentes.
Como quando o entrevistador relembrou o quanto Streep teve uma presença marcante em dois de seus primeiros papeis no cinema, apesar de ter poucos minutos em cena, em “O Franco Atirador” (1978), de Michael Cimino, e “Kramer vs. Kramer” (1979), de Robert Benton. “Mas naquele tempo os filmes tinham praticamente só uma personagem feminina… Então é compreensível que se lembrem tanto de mim”, disse a atriz, alfinetando o machismo da indústria ao priorizar largamente protagonistas homens na época em que iniciou a carreira.
“Hoje a situação mudou muito: há ótimos papeis femininos. Até porque muitas das atrizes são também produtoras”, ressaltou, referindo-se ao fato de as mulheres atualmente ocuparem posições de poder que lhes permitem inclusive direcionar os filmes para personagens que, antes, teriam pouquíssima visibilidade – ou simplesmente inexistiriam.
Streep contribuiu bastante para essa mudança, assim como Faye Dunaway, que conseguiu erguer uma sólida carreira justamente em tempos em que os filmes mais relevantes costumavam ser dedicados a personagens masculinos. Talvez pela postura destemida – Dunaway foi a epítome da mulher setentista, ao mesmo tempo sexy e autônoma, que não dependia de homem algum para se destacar e provar o seu valor.
Pelo que se vê em “Faye”, documentário dirigido por Laurent Bouzerau sobre ela, Dunaway também era/é assim na vida real. Uma mistura de talento, beleza e temperamento forte a fez se tornar uma grande estrela daqueles novos tempos em Hollywood. Após despontar no papel da fora-da-lei Bonnie Parker, em “Uma Rajada de Balas” (1967), de Arthur Penn, conseguiu papeis muito importantes em filmes como “Chinatown” (1974), de Roman Polanski, e “Rede de Intrigas” (1976), de Sidney Lumet. Por este último, venceu o Oscar de melhor atriz, no papel de uma produtora de TV obcecada por elevar a audiência de sua emissora a qualquer preço.
Foi uma das mulheres mais belas e poderosas de Hollywood, até que fez um filme que quase arruinou sua carreira: “Mamãezinha Querida” (1980), de Frank Perry, em que interpreta a atriz Joan Crawford. O longa hoje é um “guilty pleasure” bastante cultuado, mas na época foi muito mal recebido, tanto pela excessiva violência da personagem com sua filha ainda criança, Cristina, como pelo kitsch e a intensidade da performance de Dunaway. Jamais ela faria outro filme à altura de seus recursos.
Em termos estéticos, “Faye” não traz nada de inovador, mas é uma excelente peça reveladora sobre uma das atrizes mais intrigantes da Hollywood moderna. Ela se desnuda sobre temas que sempre evitou abordar, como sua bipolaridade, o alcoolismo e a fama de “atriz difícil”. Segundo Dunaway, o trabalho sempre foi o que lhe deu estímulo para seguir adiante, e talvez, após esse salto no escuro em que fala tanto de seus próprios demônios, ela consiga enternecer Hollywood e voltar a fazer justamente o que mais ama: trabalhar.
Na disputa pela Palma de Ouro, por enquanto foi exibido apenas um filme: o francês “Diamant Brut”, da cineasta Agathe Riedinger. É seu primeiro longa, e isso se faz notar pela irregularidade do filme, que tem por foco a jovem Liane, que sonha participar de um reality show e se tornar famosa. Apesar de inúmeros problemas na vida familiar, ela dedica seus dias a produzir vídeos em que aparece feliz, fazendo dancinhas, caras e bocas para um número cada vez maior de seguidores nas redes sociais.
Quando alguém lhe pergunta qual o sentido daquilo que faz, ela mostra que sabe em que terreno está pisando: “Isso faz as pessoas sonharem”. E fala de cadeira, porque ela mesma parece buscar nessa vida imaginada na internet ou na TV uma forma de evitar a dureza de sua própria rotina – o filme tem seus melhores momentos quando mostra Liane tentando se equilibrar entre sua persona de influencer poderosa e a realidade da jovem sem a menor perspectiva de futuro.
Mas o filme não tem muita solidez narrativa e tende a se dispersar, sem chegar ao fim com um discurso de fato alinhavado sobre aquilo sobre o que se propõe a debater. Para uma cineasta de primeira viagem, entretanto, o resultado é bastante digno.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema