O Centrão não existe, é Progressistas que chama

O Centrão não existe, é Progressistas que chama
Os deputados Arthur Lira e Ricardo Barros, ambos do PP, partido que acabou camuflado sob a ideia de "centrão" (Fotos: Sergio Lima e JP Rodrigues)

 

Nesta semana, falou-se muito do deputado Ricardo Barros, no centro das atenções em um novo escândalo da vacina no governo Bolsonaro. E, naturalmente, ouviu-se falar do deputado Arthur Lira, o presidente da Câmara dos Deputados, que está sentado sobre uma pilha de mais de 100 pedidos de impeachment do presidente da República, e prepara-se para engavetar mais um, o superpedido de impeachment que acaba de lhe chegar às mãos. 

Mas você saberia dizer, sem buscar no Google, se os dois são do mesmo partido e, em caso afirmativo, que partido seria esse? E se eu lhe perguntasse qual o partido político brasileiro que há anos é líder do ranking dos que têm o maior número de parlamentares denunciados, indiciados ou condenados por crimes contra a Administração Pública? Ou qual o partido teve o maior número de políticos investigados durante a Lava Jato? Ou qual o partido cuja bancada mais cresceu na Câmara dos Deputados nas últimas eleições? Você saberia dizer?  

O partido Progressistas, ou PP, é a resposta correta a todas essas questões. Mas você provavelmente não sabia disso porque o jornalismo político, e aqui incluo repórteres, colunistas e comentaristas, reiteradamente nos diz que todos esses pertencem a um coletivo genericamente identificado como centrão

O centrão é o partido que todos amam odiar. Até a extrema-direita se achava a ele superior, e fez dele escada para a sua fábula da “nova política”. Lembram quantos aplausos foram recebidos pelo general Augusto Heleno ao cantar, na convenção em que se decidiu que Bolsonaro seria o candidato a presidente pelo PSL, o “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”? 

A questão, meus amigos, é que o Centrão não existe. Não tem registro no TSE, não aparece na vinculação partidária de nenhum candidato e, sobretudo, não consta na urna eleitoral. Se não está na urna, sequer pode ser punido no ajuste de contas que as pessoas fazem com os partidos na hora em que votam. Assim, o centrão é um partido para se odiar, não para que se possa punir eleitoralmente. 

O centrão, como o entendemos hoje, é, literalmente, uma invenção dos jornalistas. Foi construído como um atalho cognitivo, para se referir a um conjunto de partidos sem sabor ou posição ideológica e sem qualquer mérito específico, cuja maior característica é o fisiologismo como método e a perene disponibilidade para fornecer pessoal a qualquer governo que o recompense com cargos e acesso aos cofres públicos. É justo que se diga que é um termo com conotação pejorativa, envolvendo um julgamento sobre a baixa qualidade republicana dos partidos assim denominados. Por isso mesmo é que o setor de comunicação da Câmara e do Senado evitam o termo, para não depreciar os partidos subentendidos. 

Apesar disso, é uma invenção que se prova extremamente nociva, porque ajudou a blindar e a proteger justamente o que se procura condenar. O rótulo centrão serviu como aquilo que em arquitetura se chama um trompe l’oeil, um truque de perspectiva cujo propósito é enganar a vista. O jornalismo, mesmo o bem-intencionado, engana a si mesmo e ao público, ao esconder um bom número de partidos malandrinhos e antirrepublicanos sob o guarda-chuva do centrão, o desprezo público desviando para o rótulo enquanto tais partidos prosperam sossegadamente, uma eleição após a outra, fora do alcance da repulsa coletiva. 

O que ajuda a explicar um dos maiores paradoxos da política brasileira, que consiste nisso: enquanto o PT vem sendo punido eleitoralmente desde o escândalo do Mensalão, em que já tinha o PP como sócio privilegiado nas falcatruas descobertas, e, com maior intensidade, depois da Lava Jato e do impeachment, o Progressistas, o partido com o maior número de denunciados e/ou condenados, prosperou à vista d’olhos, aumentando exponencialmente suas bancadas, número de filiados e estrutura partidária nos estados e municípios. Em 2016, 2018 e 2020, muitas pessoas evitaram votar em candidatos do PT, do PSDB e do MDB, cujas bancadas entraram em declínio, assim como certamente teriam evitado votar nos candidatos do centrão, se houvesse candidatos do centrão nas urnas. 

Odeia-se o centrão, mas se vota no Progressistas (ex-PP), no PL (ex-PR), no Republicanos (ex-PRB), até no PTB. Essa fórmula tem sido de extrema eficiência desde a eleição de 2016. Os jornalistas brasileiros têm sido cúmplices dessa trapaça. O que fizeram pelo PP e assemelhados é de uma generosidade inquietante. Nem uma operação de marketing para proteger o nome Progressistas teria conseguido blindar de tal maneira a marca enquanto os grandes partidos brasileiros eram enxovalhados e desprezados. Com isso, os partidos escondidos por trás do rótulo do centrão, prosperaram eleitoralmente e formaram as enormes bancadas que hoje decidem qualquer coisa no Congresso Nacional.  

Desse modo, enquanto o jornalismo, por meio de cobertura e análise, alimentava a repulsa pública ao que chama de centrão, o mais importante dos partidos camuflados por esta ilusão de ótica prosperou a tal ponto que passou a liderar uma coalização de partidos para compartilhar o governo com Bolsonaro.

 

 

Na verdade, há dois governos
no Brasil hoje, e um deles é
do Progressistas.

 

 

Como se chegou a tanto? Bolsonaro simplesmente se deu conta de que não tinha fôlego, número e competência para fazer a necessária política parlamentar, e que a pressão pelo seu impeachment aumentava consideravelmente. Afinal, trata-se de um presidente sem partido, que na verdade lidera um movimento político e uns parlamentares deste movimento em primeiro mandato, mas não um partido institucionalizado, acossado e perdido. 

Era então o perfeito match para um partido clientelista. Bolsonaro é 100% ideologia e 0 em competência política, mas o sistema político brasileiro é pródigo em partidos com 100% de pragmatismo e 0 em ideologia. Nessa categoria estão desde partidos antigos, como o Progressistas, o PL, o MDB, até partidos novos, como o PSD de Kassab. Todos passaram incólumes pelos oito anos de crise política a que estamos submetidos exatamente porque são partidos aptos a se adaptar a qualquer circunstância política, a servir a qualquer ideologia, a vestir quaisquer cores. 

Além disso, escrúpulos não parecem ser o forte de parlamentares e membros do movimento bolsonarista, inclusive os militares com que ele inundou (e, ao que vemos, enlodou) a Administração Pública. Nem faziam parte da tradição familiar no trato da coisa pública. De forma que não se verificou qualquer incompatibilidade ética entre o bolsonarismo aboletado no governo e no parlamento e o núcleo fisiológico e clientelista do sistema partidário brasileiro, que faz qualquer negócio e apoia qualquer governo, desde que paguem as suas taxas em cargos e grana. 

Nesse coletivo de raposas, o Progressistas foi o mais bem-sucedido em liderar uma coalizão de partidos fisiológicos, secundada pelos seguidores parlamentares do movimento bolsonarista, para ficar com metade do governo Bolsonaro e aliviar o presidente de parte do fardo de governar e lidar com o Parlamento. Depois de ter feito parte de todos os governos desde a década de 1990, sem jamais ter um candidato sério à presidência da República desde o malogro de Maluf, os Progressistas, enfim, chegam ao poder.     

O arranjo é simples e eficiente. O governo de Bolsonaro, continua fazendo o de sempre, na orquestração do caos nacional para seus propósitos de perpetuação no poder, enquanto governo do Progressistas passa controlar a agenda parlamentar, o pacote de maldades legislativas e a logística do clientelismo político. Juntos, os dois governos passam a boiada legislativa, desde que satisfaça os sócios de ambos nos diversos setores da sociedade. Um cuida da fachada ideológica, com lacração e performance, que é o que sabe fazer, enquanto o outro tange pragmaticamente os bois, com orçamentos secretos e paralelos, troca de apoios por cargos, e naturalmente, propinas, que é o seu ofício. 

Todos ganham, menos o país, claro. Enquanto puder ter cargos para nomear, salários para atribuir, emendas para distribuir e propinas para coletar, a coalização liderada pelo Progressistas não vai deixar que o governo Bolsonaro morra. É por essa razão que o tal superimpeachment está fadado à asfixia em alguma gaveta do deputado Arthur Lira, do PP. Os dois governos só funcionam em simbiose. O Progressistas e seus associados ficaram com o seu governo paralelo e autônomo, enquanto, por outro lado, protegem o governo de Bolsonaro do impeachment. É o seu seguro de vida. 

Para romper vínculo, alguém precisaria cobrir as perdas, como aconteceu em 2015. No episódio, o PP pediu a Dilma Rousseff o Ministério da Saúde para votar contra o impeachment. Não tendo conseguido o que queria, pediu a Michel Temer o mesmo Ministério para votar a favor do impeachment. E conseguiu. E foi assim que este mesmo Ricardo Barros, que está hoje metido em negócios escusos de vacinas, garantiu-se um ministério no governo Temer. E Dilma levou um impeachment. Não era pessoal, não era ideológico, eram só negócios. Com o Progressistas é assim. 

Disfarçado pelo rótulo de que o jornalismo político preguiçosamente não quer abrir mão, o Progressistas conseguiu ser um caso de enorme sucesso político. Justamente no período de maior rejeição da política baseada em patrimonialismo, clientelismo e fisiologismo, crescem paradoxalmente os partidos que mais sintetizam essas qualidades antirrepublicanas, e a tal ponto que um deles lidera uma coalização de semelhantes para ficar com pelo menos metade do governo vigente no país. Há de haver algumas razões para tanto, mas a mais gritante delas é o rótulo centrão, que proporciona a mais eficiente camuflagem que partidos fisiologistas, como o Progressistas, poderiam ter. E que o jornalismo político oferece, graciosamente. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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