Gesta de um valente

Gesta de um valente
Alexandre Guimarães em cena no espetáculo 'O açougueiro', de Samuel Santos (Foto: Bob Sousa)

 

“Estás a fartar-me de iguarias e o meu estômago já não comporta uma gota de Baco. Esta fartura pode aumentar o meu prazer, se me for dado gozar essa felicidade em companhia dos meus”.
Sêneca, Tiestes, tradução por Nair de Nazaré Castro Soares.

 

O espetáculo O açougueiro, com texto e direção de Samuel Santos (responsável também pelo projeto de iluminação) e atuação de Alexandre Guimarães, é daquelas realizações teatrais que aglutinam muitos sentidos ocultos sob a capa de sua aparente simplicidade. Simples e até mesmo linear é o enredo apresentado pelo intérprete, a meio-termo entre o narrado e o vivido: Antônio, homem de infância pobre, realizou o sonho de abrir o próprio açougue, casando-se pouco depois com Nicinha, a ex-prostituta do pequeno vilarejo do sertão nordestino onde ambos moram. Certo dia, entretanto, Nicinha desaparece e Antonio entra em desespero. Ao saber o que de fato ocorreu com sua amada, ele prepara uma vingança cruel contra os habitantes do lugar.

O corpo de Alexandre Guimarães – como sói acontecer nos trabalhos orientados pela técnica do teatro físico – é o grande mediador da experiência cênica. Corpo este cuja plasticidade se projeta, além de nos gestos (a preparação corporal é de Agrinez Melo) e na voz (Nazaré Sodré é a preparadora vocal), também na maquiagem (a cargo de Vinicius Vieira) e nos figurinos e adereços (sob as respectivas responsabilidades de Agrinez Melo e Mariana Mazza). Da corporeidade física do atuador, então, nascem as emanações simbólicas da narrativa – habilmente tecida em torno da pluralidade do conceito de carne.

Alexandre Guimarães em cena no espetáculo ‘O açougueiro’, de Samuel Santos (Foto: Bob Sousa)

E a carne se faz verbo, mas também se faz canto sem palavras, aboio entoado pelo intérprete enquanto conduz a audiência por climas e atmosferas agrárias, pastoris, arcaicas, imemoriais. Que remetem à saudade e à nostalgia não somente de um sertão geograficamente demarcado, mas também do sertão-mundo de que fala José de Alencar em “O nosso cancioneiro”: “Conhece decerto, meu prezado colega, o aboiar dos nossos vaqueiros, ária tocante e maviosa com que eles, ao pôr-do-sol tangem o gado para o curral. São os nossos ranz sertanejos; e tenho para mim que nos pitorescos vales da Suíça não ressoam nem mais belos, nem mais ricos de sentimento e harmonia do que nas encantadoras várzeas do meu pátrio Ceará. Realiza-se ali a lenda poética de Orfeu. Não há rês arisca, nem touro bravio que resista aos arpejos do bardo, às vezes infantil, chamando-os ao aprisco. Quem tirasse por solfa esses improvisos musicais, soltos à brisa vespertina, houvera composto o mais sublime dos hinos à saudade. Como os suíços, os cearenses que o tivessem ouvido, sentiriam, escutando-o de novo, esse marasmo da ausência que se chama nostalgia”. O açougueiro constitui, assim, uma espécie de espetáculo-aboio-solo, entoado livremente para orientar o espectador em relação aos sentidos não-verbais, tangidos pela subjetividade, que este e o atuador, juntos, procuram.

Alexandre Guimarães em cena no espetáculo ‘O açougueiro’, de Samuel Santos (Foto: Bob Sousa)

Outros elementos da cultura oral brasileira se misturam às palavras e imagens nascidas do texto de Samuel Santos, como as cantigas de reisado e as toadas de vaqueiro. Do primeiro deles a criação se abastece pela via da cantoria e do enredo conciso, apresentado pela série de pequenos atos encadeados. Já a toada – entendida como a canção “breve, em geral de estrofe e refrão, em quadras”, “melancólica e sentimental”, cujo assunto “não exclusivo, mas preferencial, é o amor”, segundo a definição de Câmara Cascudo – precipita-se na forma que dá sustentação a toda a performance, propriamente, e que coincide com a figura híbrida encarnada por Alexandre Guimarães, metade açougueiro, metade vaqueiro, ambas atividades, vale destacar, nas quais o homem fala com os bois como se esses lhe fossem companheiros de infortúnio. Há algo de individualismo e de arrogância em Antonio, entregue à própria solidão. Mas há algo de trágico nele também, o pastor de gado abatido (a ambiguidade do adjetivo aqui é inteiramente proposital) que se compraz em preparar um sinistro repasto de carne em decomposição.

Como habilmente demonstra o causo a que assistimos com certo espanto e muita atenção, a deterioração também é moral e dos costumes e a gesta do valente se transforma em cantiga social, que denuncia a caça, o sacrifício e o abate; a impalpabilidade da justiça e a inexorabilidade da vingança. Em O açougueiro, cuja última apresentação aconteceu neste domingo (5), no Sesc Pompeia, o material narrativo é um alimento que não se recusa do corpo do ator-narrador, com cujos cantos, danças, esgares, modulações vocais, giros e exaltações aprendemos a digerir sapiências, sem nunca com elas, entretanto, nos refestelarmos.

(2) Comentários

  1. Tive prazer de assistir o Açougueiro no seu berço, o Espaço O Poste. E é incrível como somos transportados para o seu mundo. Nos envolvemos com o clima, os animais, as dores e a “saborosa” e triste vingança de Antônio.

  2. Que legal me deparar com o seu olhar sobre “O Açougueiro”. Moro no Recife e sei que o ator Alexandre Guimarães se entregou com afinco a esta proposta do diretor-dramaturgo Samuel santos. Parabéns a todos os envolvidos! Dá orgulho saber que estão sendo bem recebidos Brasil afora. Evoé!

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