Cena Contemporânea

Cena Contemporânea

A atriz Jandira Martini em “Prof! Profa!” (Foto: João Caldas)

Aos mestres, com enfado

Desafio de monólogo com Jandira Martini é levar o espectador para além da indignação reacionária com o “estado de coisas que está aí”

Welington Andrade

“Tem muito pouca coisa que dá pra ver no mundo. Quase nada se vê. Por isso vocês ouçam bem as palavras de dona Margarida: se algum dia vocês virem alguma coisa podem se dar por felizes. Hoje em dia não se vê quase nada por aí. São poucos aqueles que vêem alguma coisa.”
(Apareceu a Margarida. Roberto Athayde.).

O espetáculo Prof! Profa! reúne uma atriz e um diretor cujas trajetórias no teatro brasileiro apresentam um vigor e uma solidez incontestável: Jandira Martini e Celso Nunes. Formada pela Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD), Jandira Martini coleciona, em quase cinco décadas de carreira, inúmeras atuações, seja em clássicos do teatro universal (Medeia, Ricardo III, Com a pulga atrás da orelha), seja em peças de autores brasileiros (Oduvaldo Viana Filho, Carlos Queiroz Telles, Fauzi Arap), seja ainda em criações coletivas como as da Royal Bexiga’s Company, grupo que ajudou a fundar nos anos 1970 com ex-colegas da EAD. A partir de 1986, ela passou a se dedicar também à dramaturgia, tendo escrito alguns textos cômicos (em parceria com Marcos Caruso) que fizeram muito sucesso nos palcos paulistanos, dentre os quais se sobressai uma verdadeira obra-prima da comédia de costumes: Porca miséria.

Também egresso da EAD, Celso Nunes estagiou, em 1967, no Centro Universitário Internacional de Formação e de Pesquisa Dramáticas, em Nancy, na França, e, dois anos depois, fez o curso de direção teatral na Universidade de Paris – Sorbonne. De volta ao Brasil, ele dirigiu vários espetáculos memoráveis, como Seria cômico se não fosse trágico, de Friedrich Dürrenmatt, com Fernanda Montenegro e Fernando Torres; Eqüus, de Peter Shaffer, com Paulo Autran e Ewerton de Castro; Escuta, Zé, baseado em texto de Wilhelm Reich, com Marilena Ansaldi; e As lágrimas amargas de Petra von  Kant, de Rainer Werner Fassbinder, novamente com Fernanda Montenegro. A partir dos anos 1990, Celso passou a se dedicar também à carreira universitária junto ao Departamento de Teatro da Unicamp.

Escrita pelo professor e dramaturgo belga Jean-Pierre Dopagne, Prof! Profa! (no original francês, Prof) põe em cena uma ex-professora que trocou a sala de aula pelos palcos, dirigindo-se diretamente ao público para contar sua história. Cansada de lecionar literatura para adolescentes de trato rude, enfadados da civilização, um dia ela abre fogo contra uma classe inteira, sendo condenada a uma pena sui generis: ser recolhida à cela de uma penitenciária de onde deve sair toda noite para contar sua história em um teatro local, retornando à prisão ao fim de cada apresentação. Diante de uma narração em que se misturam os registros cômico, insólito e dramático, a platéia se pergunta quem é essa mulher, afinal. Uma louca arrematada ou uma idealista que comete um ato de violência purificador?

Em Prof! Profa!, Jandira Martini exibe pleno domínio sobre a emissão das palavras, o gestual físico (trabalhado por meio de uma estudada estilização) e os efeitos de um humor cínico e cruel, mantendo a platéia sob atenção constante durante os cerca de 70 minutos que dura o espetáculo. A direção de Celso Nunes pontua eficientemente a economia de recursos prevista no próprio texto, extraindo o máximo de expressividade da performance da intérprete – bastante desafiadora, já que unicamente centrada neste depoimento com matizes de confissão.

Com os professores reais sentados na platéia (em todas as sessões parece haver um grande contingente deles) o espetáculo estabelece uma relação de identificação total e imediata, embora a empatia pelo tema atraia outros públicos também afeitos ao discurso das chamadas “humanidades”. Como negar o fracasso do sistema de ensino perante o mundo contemporâneo? Como não assumir que muitos dos saberes assentados sobre uma longa tradição soam obsoletos e inúteis para as novas gerações?

O espetáculo propõe tais questionamentos e é legítimo que o faça. Entretanto, o efeito de tais inquietações sobre essa platéia, digamos, esclarecida pode resultar em contemplação nostálgica, ou ainda em indignação conservadora. O texto de Jean-Pierre Dopagne discute temas candentes como a inadequação dos métodos pedagógicos atuais, o tédio dos jovens, a dissolução dos antigos valores, o descompasso entre o mundo real e os ideais etc., mas o faz dentro dos limites de uma “peça de conversação”, uma forma fechada, ainda que arejada pelas pontuais comparações entre o mundo da educação (representado no plano do ele-lá-então) e a esfera do teatro (vivida na presença do eu-aqui-agora).

Trata-se de um manifesto de resistência da cultura de língua francesa, herdeira direta da tradição greco-latina (área em que Dopagne se especializou), que vê os poemas homéricoscomo centros irradiadores do humanismo racionalista de que se orgulha o mundo ocidental? Ou se trata de um libelo conservador, calcado na reafirmação das poéticas tradicionais, incapazes de compreender as formas radicais do que seja surpreendentemente novo na experiência contemporânea? A professora tão bem defendida por Jandira Martini é agente de uma tragédia sublime ou mera figurante de uma comédia patética?

Todos nós, professores, artistas, intelectuais, livres-pensadores, homens de gosto e de repertório refinados, parecemos perplexos com a realidade circundante, regular em sua falta de polidez, cúmplice da geléia geral que sempre ameaça se precipitar em hecatombe e barbárie. No entanto, cultivamos nosso esforço de resistência apegando-nos a velhas formas cujas condições históricas há muito foram superadas. Nós, professores, temos muitas dificuldades em experimentar formas novas, que instabilizem alguns pilares sobre os quais se constrói o discurso da educação, como as noções totalizantes de “ponto de vista”, “gênero”, “coesão”… Talvez a educação também esteja demandando as mesmas formas corais que têm impregnado experimentos artísticos e culturais contemporâneos de difícil classificação, como aponta a ensaísta Flora Süssekind em texto primoroso, “Objetos verbais não identificados”, recentemente publicado em O Globo.

Somente nos forçando a sair dessa zona de conforto de bem-pensantes (precariamente atuantes) é que podemos extrair alguma lição advinda da tensão dramática que se estabelece em Prof! Profa!. Do contrário, tal tensão esgotar-se-á na mera relação passiva de uma professora criminosa com seus espectadores-cúmplices, cumplicidade também reforçada na leitura metalinguística que a peça sugere discretamente.  E o cerne dessa tensão é seu caráter unilateral: só uma das duas partes tem direito à voz e à ação, a outra fica reduzida à passividade de um riso pretensamente libertador. Este monólogo com ares de circunlóquio pode levar a pensar, mas pode também simplesmente conduzir a uma falsa consciência: vivida em uma ação dramática que pode se concretizar por meio de um acordo implícito, silencioso, não aberto a um verdadeiro confronto.

Prof! Profa!
Onde:
Teatro Eva Herz – Avenida Paulista, 2073 – (Conjunto Naciona) – São Paulo
Quando: até 13/12
Quanto: R$ 50
Info.: (11) 3340-2000

welingtonandrade@revistacult.com.br

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