Cena Contemporânea
Os atores Aury Porto e Camila Pitanga em “O Duelo”, espetáculo da Mundana Companhia (Foto: Renato Mangolin)
Cáucaso é quando menos se espera
Mundana Companhia segue firme na poética de reconstrução de textos essenciais da cultura russa e de sua aproximação ao universo do homem brasileiro
Welington Andrade
“Ser um verdadeiro russo, ser plenamente russo,
não significa senão ser irmão de todos os homens.”
(Fiódor Dostoiévski).
O Centro Cultural São Paulo está abrigando, até o dia 15 de dezembro, um espetáculo potente e vigoroso que abre muitas frentes de discussão não somente na área da realização cênica, em sentido estrito, como também no terreno da cultura brasileira, em caráter mais amplo. Trata-se da adaptação da novela O duelo, de Anton Tchékhov, pela Mundana Companhia, a quarta incursão que o grupo realiza pela cultura russa, depois de O idiota – uma novela teatral (2010), Tchékhov 4 – uma experiência cênica (2010) e Pais e filhos (2012).
O médico e escritor Anton Pavlóvitch Tchékhov (1860-1904) dedicou-se a três gêneros literários que o alçaram à condição de uma das mais respeitadas personalidades das letras mundiais: o conto, a novela e o teatro. Depois de iniciar sua carreira escrevendo para diversas revistas breves narrativas humorísticas que lhe renderam bastante sucesso entre os leitores (embora nenhum prestígio junto à crítica), Tchékhov concentrou, no período que vai de 1886 até o ano de sua morte, toda sua energia criativa na concepção de obras antológicas. Inaugurou um modelo de conto impressionista no qual se destacam, por exemplo, A dama do cachorrinho, Angústia, Olhos mortos de sono, Queridinha e Um caso clínico. Estendeu a verve de sua prosa curta a novelas às quais imprimiu a marca de um existencialismo lírico e moderno, como em A estepe, Minha vida e Mujiques. E encaminhou a cena russa para um tipo de naturalismo sui generis, levando o Teatro de Arte de Moscou a encontrar “um estilo” com as montagens de A gaivota, Tio Vânia, As três irmãs e O jardim das cerejeiras.
O duelo, a novela que a Mundana Companhia houve por bem adaptar (publicada em forma de folhetim no jornal Nóvoe Vriémia, de outubro a novembro de 1891) é uma pequena obra-prima que reúne os principais temas da obra tchekhoviana: o desencanto de estar no mundo, o sentimento de inutilidade diante da vida, a percepção da felicidade como algo íntimo e fugidio, a compaixão tácita frente ao fracasso e à incerteza de dar um passo adiante… E as qualidades que a Mundana Companhia logrou ao transpor a obra da linguagem literária para a linguagem teatral são inúmeras.
O espetáculo preserva a força do texto de maneira espontânea, quase despretensiosa, não gozasse a palavra de certa aura de informalidade – bastante inadequada para um processo que resultou em um equilíbrio muito bem calibrado entre rigor e experimentação. O ponto alto da transposição – tão inteligentemente conduzida por Vadim Nikitin e Aury Porto – reside no fato de que não há uma deferência canônica à obra, tampouco uma apreensão intelectualizada de seu autor. Todos os atores se apropriam do texto tchekhoviano como se ele lhes fosse muito próximo, sem, entretanto – por mais paradoxal que possa parecer – esvaziá-lo de sua aguda profundidade.
Concorre para essa apropriação tão orgânica o abrasileiramento que o “texto precipitado em contexto” sofreu. Não por meio das águas superficiais do pitoresco e do folclórico nas quais se banha grande parte da dramaturgia televisiva, por exemplo, quando confunde a descoberta de uma cultura distante com fraseologia e estereótipo. Muito longe disso, a Mundana Companhia mergulhou com ousadia no Mar Negro para, depois de transpostas muitas fossas abissais, emergir no oceano setentrional que banha Fortaleza – de onde partiu rumo a Arneiroz, Lavras da Mangabeira e Iracema, cidades do sertão cearense que acolheram o processo de elaboração do espetáculo. O belo trabalho de sondagem da alma humana realizado pelo grupo leva a melancolia do homem russo parecer idêntica à do homem brasileiro, dominado igualmente por uma paisagem abrasadora, inóspita, imemorial. Calçados, peças de roupa, a onomástica russa e os sotaques brasileiros também convivem nesse estado de íntima similitude.
A envergadura do trabalho que a Mundana Companhia está empreendendo junto à cultura brasileira é digna de registro. Estudar as grandes narrativas ficcionais do século XIX e querer estabelecer entre elas e nossa contemporaneidade pontos de contato e de fricção é resistir bravamente à aridez fabular dos dias de hoje, saturados de hiperrealismo, pobres de fantasia criadora. Levar o público a fruir de uma experiência narrativa como essa (nas acepções de Roland Barthes e Walter Benjamin, respectivamente) é em si uma postura política porque implica ressignificar a relação ator-espectador. Para além do entendimento da poética tchekhoviana, há a compreensão de outros signos: a instauração do espaço cênico, a atuação coral da companhia, a distensão da noção de tempo de duração do fenômeno teatral, a atmosfera de festa e de celebração que emana dele…
E, não menos importante, porque costurando toda essa rede complexa de interações, há ainda que se destacar o caráter lúdico da montagem – presente na performance dos atores, na trilha sonora, nos figurinos, na iluminação, nos adereços (a escultura inflável manipulada por Camila Pitanga é de uma plasticidade impressionante!), nas pequenas interferências narrativas sobre o texto original – que concorre para acentuar, de tempos em temos, uma experiência de puro humor. Aquele tipo de humorismo sutilmente nonsense, presente tanto nas estepes de Tchekhov, como no sertão rosiano.
Cada ator da Mundana Companhia confere ao ato de estar em cena um vigor impressionante, imprimindo ao corpo e à voz um domínio criativo cada vez mais raro nos dias de hoje. Entre as duas presenças femininas do espetáculo, estabelece-se um contraste muito rico: o registro de Carol Badra se dá pela via de uma intensidade algo patética; o de Camila Pitanga, pelo caminho da sutileza e do langor. Das figuras masculinas emana aquela aura dionisíaca que parece ungir o melhor do experimentalismo paulistano, tão bem encarnada por Paschoal da Conceição, Aury Porto, Vanderlei Bernardino e Sérgio Siviero. E que atinge também as atuações envolventes de Fredy Állan e de Guilherme Calzavara. Registrem-se, na vivacidade das formas corais, as presenças de Otávio Ortega, Radael Matede e Victor Gally. E, conduzindo toda a equipe de criadores, uma atriz-diretora tão talentosa: Georgette Fadel.
Ao adentrar o espaço labiríntico e subterrâneo (nada mais russo, pois) do Centro Cultural e se deixar envolver pelo universo narrativo ali habilmente construído, o espectador aprende que não é possível perder de todo a esperança. E intui que é preciso conduzir seu espírito sempre alerta por entre lacunas, ambivalências e ambigüidades – sejam elas vividas na oscilação da psique ou no laconismo do discurso. E cerca de três horas e meia depois, quando deixar para trás o espaço da representação, ele descobrirá que é outra pessoa. Que aprendeu o valor do perdão e da fé no homem. Ainda que poucos personagens na vasta galeria tchekhoviana consigam vencer no mundo ou nele se ajustar, nós – seus leitores e espectadores – nunca perderemos o otimismo interior. Pois daqui a duzentos ou trezentos anos, haverá uma vida nova. Nova e feliz. E é para ela que estamos vivendo hoje, conforme nos ensina o autor de As três irmãs.
Sair desse espetáculo da Mundana Companhia é acreditar na avassaladora força do teatro, capaz de transformar o futuro inexpugnável em um mágico porvir, ao alcance de nosso aplauso.
welingtonandrade@revistacult.com.br