Cartografia da Ausência: A “Arte Secreta” de Heleno Godoy
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A arte não circula livremente. Vivemos em um mundo fundado sobre a lógica de um sistema que hierarquiza saberes e existências, traçando fronteiras invisíveis, mas profundamente reais, entre o que pode ou não ser visto, ouvido, pensado. Essas barreiras não são apenas econômicas ou geográficas; elas pertencem ao domínio do pensamento, no qual certas formas de expressão, determinadas maneiras de sentir e de transformar o mundo são sistematicamente reduzidas ao silêncio ou à deformação. A arte que não se submete aos modos hegemônicos de pensar é tratada como curiosidade ou folclore, quando não é simplesmente ignorada.
Essa lógica não se limita às relações globais; ela se desdobra dentro dos territórios nacionais. No Brasil, temos divisões regionais que reproduzem, em escala local, a mesma mecânica que subordina o Sul ao Norte. A arte produzida em certos estados do país, por exemplo, circula com dificuldade nos grandes centros culturais e, quando chega a ser vista, frequentemente aparece como algo exótico, limitado à confirmação de estereótipos, incapaz de transcender a posição de alteridade.
Essas barreiras invisíveis nos afastam ou até mesmo nos impedem de acessar determinadas expressões artísticas, que, ao contrário, poderiam nos oferecer ferramentas para refletir sobre o mundo e enfrentar as lacunas inevitáveis que a vida nos impõe no cotidiano. O resultado é uma existência mais empobrecida, tanto estética quanto existencialmente. Essas limitações afetam determinadas regiões, mas igualmente os lugares considerados mais privilegiados, reduzindo a riqueza cultural e intelectual do mundo como um todo.
Nesse contexto, é pertinente refletir sobre a obra do escritor goiano Heleno Godoy, cuja literatura ainda não alcançou o reconhecimento nacional merecido, apesar de um crítico literário da envergadura de Luiz Costa Lima ter dedicado a ele um texto emblemático, intitulado “A Arte Secreta”, no qual enfatiza a singularidade de sua poesia (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, 23 abr. 2006). Para Lima, Heleno Godoy opera em um espaço que equilibra memória pessoal e perspectiva universal, construindo sua obra com um rigor formal que se mantém distante de sentimentalismos fáceis. Não é apenas uma questão de técnica: Lima destaca que Godoy merece maior visibilidade tanto por sua contribuição única à literatura brasileira quanto por sua capacidade de desafiar, expandir e enriquecer os cânones que sustentam nossa tradição literária.
Heleno Godoy construiu uma trajetória literária e intelectual marcada pela multiplicidade de formas e pelo rigor técnico. Sua obra literária inscreve-se no panorama maior da literatura brasileira. Cada livro que produziu é um território no qual a linguagem se transforma em pensamento e o fazer literário se torna um ato de existência. Desde sua estreia em Os veículos (1968), até títulos como A vasa (1992) e Lugar comum e outros poemas (2005), Godoy explora com precisão e inventividade os espaços mutáveis da linguagem poética. Em seu romance As lesmas (1969), a prosa ganha uma dimensão experimental que dialoga com as tensões do seu tempo, enquanto suas coletâneas de contos, como Relações (1981) e O amante de Londres (1996), revelam sua habilidade em transitar por diferentes gêneros literários. Cada obra traz à tona dilemas humanos e estéticos por meio de uma dicção única que questiona fronteiras formais e existenciais.
A produção literária de Heleno Godoy desafia classificações e opera em um espaço de intensidade, em que forma e pensamento se entrelaçam. Ele propõe uma literatura que expande os limites da imaginação, desestabilizando certezas. Por isso, ler Heleno Godoy é encontrar uma poética que se desenha como um campo de tensões, oscilando entre a subjetividade e a objetividade, a memória e a linguagem, o local e o universal. Sua escrita emerge desse entre-lugar, um espaço de encontros e desdobramentos, no qual influências como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e T.S. Eliot, por exemplo, não são simplesmente assimiladas, mas transformadas, reconfiguradas em uma operação literária que é simultaneamente uma continuidade e uma ruptura. Godoy desloca a tradição, ao dobrá-la sobre si mesma para extrair novas possibilidades.
A poesia de Heleno Godoy articula o rigor formal, a economia vocabular e uma profundidade emocional controlada por uma ironia que jamais se exaure em evidência. Em Os veículos, obra inaugural, destaca-se pelo uso experimental da linguagem e pela transformação semântica dos signos. Com A casa, o poeta desloca-se para um território simbólico e afetivo, encenando o espaço doméstico como lugar de convergência entre memória e materialidade. A residência, longe de ser um abrigo fixo, é convocada como vestígio e vestimenta, permeada pelas temporalidades que lhe escapam e a constituem. Aqui, a casa emerge como uma metáfora densa da condição humana: um sítio de entrelaçamento de memórias e ausências, em que a materialidade desgastada dos objetos dialoga com a persistência simbólica do lugar. Os poemas condensam a potência de Heleno Godoy em converter a trivialidade do cotidiano em uma paisagem poética de alcance universal. Em Lugar comum e outros poemas, Godoy atravessa um registro mais confessional, mas sem abdicar do humor sutil e da ironia que configuram sua própria marca poética. A memória pessoal, tratada como interface do coletivo, se aproxima da prosa em sua tessitura narrativa, mas preserva a densidade lírica que assegura a singularidade de sua escritura.
Um dos momentos de maior intensidade em sua obra poética encontra-se em “Tulsa, Oklahoma 6”, do livro Lugar comum e outros poemas. Neste poema, Heleno Godoy desloca o olhar para o apagamento histórico e cultural dos povos indígenas nos Estados Unidos, construindo uma cartografia imagética que confronta de modo incisivo as lógicas da colonização e do capitalismo. A ironia que atravessa o poema, manifesta em versos como “Caído de bêbado, dormindo / na rua, perto de um daqueles / grandes shopping centers”, amplifica o abismo entre a condição marginalizada dos povos originários e o esplendor fetichizado do progresso econômico. O poema não só denuncia, mas também revela, em sua tessitura, o embate entre memória e esquecimento, entre presença e aniquilação.
Na prosa, Heleno Godoy inscreve-se como um operador singular de formas e sentidos. As lesmas exemplifica esse movimento ao engajar-se com o fragmentarismo de literaturas por alguns denominadas de pós-modernas, instaurando uma poética que mistura memória, introspecção e simultaneidade. O romance se distingue pela abordagem pioneira da homoafetividade, inscrita não como tema isolado, mas como parte de uma constelação de forças que atravessam o social, o histórico e o subjetivo. Ao relacionar tais dimensões com a reflexão sobre a ditadura militar, Godoy constrói um texto que é ao mesmo tempo interrogação do passado e invenção de futuros. Essa combinação de experimentação formal e pertinência crítica faz da prosa de Godoy um espaço de diferença e de potência no panorama da literatura brasileira. Tanto na poesia quanto na prosa, sua voz opera como uma máquina de diferença, convocando o leitor a reconfigurar seus modos de ver e habitar o mundo. Heleno Godoy articula tradição e modernidade não como opostos, mas como forças que se atravessam e se potenciam mutuamente.
A inscrição de Heleno Godoy no corpus da literatura brasileira contemporânea é um vetor que se desdobra em direções múltiplas, apesar de, como já salientei, sua recepção ainda rarefeita para além dos âmbitos crítico e acadêmico. Trata-se de uma presença que, mais do que ocupar um espaço definido, desestabiliza os regimes de pertencimento e reconhecimento, convocando a literatura a um retorno à sua função primária: ser máquina de diferença e de porvir. A escritura de Godoy opera ao mesmo tempo por negação – rejeitando o conforto dos clichês estéticos, das formas estabilizadas e das ideologias prontas – e por afirmação – abrindo brechas para o novo, o imprevisto, o indomável. Ao fazer isso, reafirma a literatura não como mero espaço de reprodução, mas como um campo de potência criadora, no qual a invenção e o questionamento se apresentam como possibilidades imprescindíveis, verdadeiros imperativos ontológicos.
Confrontar-se com a obra de Heleno Godoy e perceber que, mesmo uma década após Luiz Costa Lima destacar a relevância de sua “arte secreta”, a pergunta “Quem sabe quem é Heleno Godoy?” ainda ecoa na abertura de sua fortuna crítica — apresentada em Inventário: Poesia reunida, inéditos e dispersos [1963-2015] — revela um sintoma que vai além da mera questão do reconhecimento cultural. Estou falando de uma política, ou melhor, de uma geopolítica – fluxos de poder, saber e valor que se articulam para constituir um mapa em constante reconfiguração. Nela, a obra de Heleno Godoy se inscreve como uma linha de fuga, um traço que desestabiliza hierarquias e desmascara ausências estruturais, interrogando as condições de produção, distribuição e validação da literatura no Brasil.
A literatura de Heleno Godoy não opera simplesmente contestando as hierarquias do centro sobre a periferia: ela as revela como relações recíprocas de definição mútua, evidenciando que a suposta centralidade só existe porque está sempre fabricando periferias. Suas obras, ao emergirem de fora do eixo Rio-São Paulo, não pedem passagem para entrar na república das letras; elas expõem o fato de que o que chamamos de “centro” depende da exclusão ativa do que chama de “margem” para manter sua posição. Godoy mostra que a periferia é uma operação – um efeito do centro em crise. Sua obra não solicita inclusão: ela reescreve o mapa. Enfim, Godoy nos obriga a admitir: o que chamamos de literatura nacional não é mais do que um campo de relações e, como todo campo, está sempre sendo atravessado por forças que o deslocam, o contestam e o recriam.
Esse quadro nos faz refletir sobre as necessidades atuais que enfrentamos, que vão além de simplesmente garantir que todas as vozes sejam ouvidas. Trata-se de reconhecer que cada uma dessas vozes carrega consigo uma forma singular de pensar, de imaginar, de afetar e de ser afetado. A arte é uma tecnologia de pensamento, um modo de fabricar mundos. Quando se limita a circulação da arte, não se exclui apenas o outro – excluímos possibilidades de transformação de nós mesmos, pois é na relação com a diferença que nossas certezas se dissolvem e que o novo pode emergir.
A invisibilização da arte é, vale repetir, uma forma de empobrecimento do próprio pensamento. Ao não acessar a multiplicidade de formas de sentir, imaginar e significar o mundo, restringimos nossa capacidade de transformação. É preciso abandonar a ideia de que existe um único centro de gravidade para a arte e para o pensamento, e reconhecer que cada expressão é um mundo em si, carregando em sua materialidade a potência de outros futuros, outros modos de vida. O que está em jogo aqui não é unicamente justiça cultural, mas a possibilidade de reinventarmos a própria ideia de humanidade.
A invisibilidade da “arte secreta” é uma perda para o imaginário cultural que ela poderia transformar. Perder o mundo de Heleno Godoy é interditar a passagem das contribuições estéticas e existenciais que ele concebeu, fechando os canais pelos quais suas ideias poderiam alcançar as pessoas e afetá-las. Trata-se de uma mutilação da capacidade imaginativa, como se amputássemos um dos modos possíveis de ser no mundo. Ao bloquear esses encontros, restringimos não tão-somente a circulação de sua obra, mas a própria potência transformadora da imaginação, que se alimenta do diverso para reinventar a vida.
Essas ausências operam como um índice de uma dinâmica mais ampla, como gestos que, paradoxalmente, revelam algo fundamental sobre o sistema de valor que organiza nossa percepção estética e epistemológica. Não se trata apenas de Godoy, mas de possíveis outros “Helenos” espalhados pelo Brasil, cujas existências artísticas e políticas são constantemente situadas em zonas de subvisibilidade. Esse(a)s artistas e suas práticas configuram mundos inteiros, ontologias que se desdobram na resistência ao enquadramento hegemônico.
A questão, então, não é somente reconhecer essa presença, mas compreender como o próprio dispositivo que a invisibiliza constitui parte da maquinaria (neo)colonial que insiste em traduzir e domesticar aquilo que escapa aos seus parâmetros. Godoy e outros Helenos são operadores de um contraste que desestabiliza as categorias que sustentam essa exclusão. Eles nos convidam, assim, a repensar as condições de possibilidade daquilo que chamamos de “arte” ou “cultura” no Brasil contemporâneo.