Descontraída, correspondência de Jorge Amado e Saramago revela incômodos literários

Descontraída, correspondência de Jorge Amado e Saramago revela incômodos literários
Os escritores Jorge Amado e José Saramago (Acervo Zélia Gattai/ Fundação Casa de Jorge Amado)

 

 

Depois da correspondência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre ter sido compilada em um livro, é a vez de outra célebre dupla de amigos entrar em cena: os escritores Jorge AmadoJosé Saramago, cujas cartas trocadas na década de 1990 acabam de ser reunidas em Com o mar por meio – uma amizade em cartas.

Co-organizada pela escritora Paloma Jorge Amado (filha do brasileiro), a obra será lançada oficialmente neste sábado (29), durante a FLIP, na Casa Amado e Saramago – uma parceria entre a Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador, e a Fundação José Saramago, de Lisboa. O título é criação do próprio Saramago, retirado de um trecho de um diário em que fala da amizade com o colega brasileiro.

A ideia veio não só de Paloma, mas também de Pilar del Río, jornalista e viúva de Saramago. Foi coincidência: desde o início do ano, os pesquisadores da Fundação Casa de Jorge Amado já estavam trabalhando em organizar a correspondência entre os dois com o objetivo de publicá-la em formato de livro quando Pilar entrou em contato com Paloma, por telefone, sugerindo a montagem da casa na FLIP.

As cartas que compõem Com o mar por meio foram enviadas entre 1992 e 1998, via fax, entre as cidades em que os escritores viveram: Salvador e Paris; Lisboa e Lanzarote – respectivamente, moradas de Jorge Amado e Saramago.

A amizade entre eles começou tarde, quando os dois já tinham carreiras literárias consolidadas e estavam ambos em idades avançadas: Jorge Amado aos 78 anos e Saramago, aos 68 – embora o português, segundo Pilar, já fosse leitor da obra do colega brasileiro muito antes do primeiro contato, em 1990, quando fizeram parte do júri do prêmio da União Latina, em Roma.

Daí em diante, mantiveram uma relação firme e amistosa que se estendia às esposas, Pilar del Río e Zélia Gattai, frequentemente citadas nas cartas. Sempre que podiam, os casais se encontravam ao redor do mundo: em Paris, Roma, Madri, Lisboa, Brasília e na Bahia.

A partir da correspondência, o leitor descobre que a amizade surgiu de um desejo comum: de que o Prêmio Nobel fosse dado a um autor da língua portuguesa. Nos escritos, eles brincam constantemente sobre o assunto, apostando qual dos dois seria o felizardo – Saramago ganharia a “disputa”, em 1998, pouco depois de Jorge Amado receber o Camões, em 1994; no ano seguinte, 1995, seria a vez do português vencer o prêmio mesmo prêmio.

Carinhosas, as cartas têm cunho pessoal, e trazem, além dos comentários sobre as premiações literárias, pedidos de conselhos sobre literatura. “Achas que vale realmente insistir no [prêmio] Nonino? Se eles consideram que o [prêmio] Grinzane é obstáculo (mas por quê, santo Deus?), o melhor será deixar cair. Não andamos a mendigar prémios nem tu nem eu”, questiona Saramago, na primeira carta do livro, de dezembro de 1992. Na assinatura, lê-se: “Beijos da Pilar, abraços, José”.

O tom das conversas é descontraído. O autor de Gabriela, cravo e canela faz piadas sobre sua “péssima caligrafia”, e até confessa que pediu à esposa que escrevesse em seu lugar: “Espero que a letra da Zélia seja mais legível que a minha”, brinca, em março de 1993. Em outra ocasião, o brasileiro conta ao amigo que atrasou a resposta de uma carta porque seu aparelho de fax pegou fogo e ficou parecendo “um vulcão”.

Além das piadas, da vida íntima e das dúvidas sobre o próprio trabalho, os autores compartilham também opiniões sobre o contexto literário e político de seus países, e debatem de forma bem humorada sobre outros escritores, como o português António Lobo Antunes, suposto rival de Saramago.

As cartas trazem também registros da pressão sentida pelos escritores em seus países enquanto não venciam o Nobel e o Camões – exercida pela imprensa, pelos leitores ou mesmo por amigos sempre que a data de anúncio dos ganhadores se aproximava. Entre si, diziam estar “condenados por não ganhar”.

Em uma carta de outubro de 1994, Jorge Amado lamenta: “Ainda não será desta vez que iremos, os quatro, a Estocolmo festejar o Nobel de José: um japonês [Kenzaburō Ōe, vencedor em 1994] nos atropelou”. A última correspondência do livro, porém, vinga a longa espera da dupla: é uma carta de Jorge Amado, dando os parabéns a Saramago pelo Nobel, em 1998.

Aproveitando o lançamento de Com o mar por meio, a Fundação Casa de Jorge Amado deve compilar em breve outros conjuntos de cartas do escritor, trocadas com Érico Veríssimo, com João Ubaldo Ribeiro e com Carlos Drummond de Andrade. Ainda não há previsão de lançamento, mas material não falta: dos 250 mil documentos que compõem o acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, 70 mil são cartas.

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