Correspondência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre disseca 44 anos de amizade

Correspondência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre disseca 44 anos de amizade
Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (Divulgação/Acervo Fundação Gilberto Freyre)

 

 

Fruto da pesquisa de doutorado da professora Silvana Moreli Vicente Dias, defendida em 2007 na USP, Cartas provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira (2017) acaba de ser publicado pela Global Editora. Além de 68 cartas, bilhetes, postais e telegramas, o livro traz também anotações e análises que ajudam a entender a importância da correspondência no panorama intelectual brasileiro.

As cartas são importantes tanto por seu estilo de escrita, marcado pela “tendência ao riso e à ironia”, diz a pesquisadora, como pelo conteúdo, que atesta o movimento dos intelectuais que pensaram a modernização brasileira. “Tanto Bandeira quanto Freyre tinham um olhar apurado para os mínimos detalhes, para os acontecimentos grandes e pequenos, para os elementos incongruentes que pareciam confrontar ideias estabelecidas.”

Em uma carta datada de 1925, por exemplo, Bandeira elogia um artigo de Freyre sobre culinária pernambucana – inclusive Recife, cidade natal de ambos, era um dos temas constantes das conversas. Radicado no Rio de Janeiro, o poeta escrevia constantemente ao sociólogo, que ainda morava em Pernambuco, sobre sua província de origem.

“A ‘província’ – especificamente, Recife e Pernambuco – acaba sendo uma espécie de leitmotiv [tema recorrente] dessa correspondência. Num primeiro momento, ela parece apenas ressaltar um valor biográfico, um apego ao lugar de origem de ambos. Mas também aparece como espaço de construção autorreflexiva, de elaboração de autorretratos múltiplos, que aliam passado e presente, herança africana, indígena e portuguesa, cultura erudita e popular”, explica a pesquisadora.

O provincianismo funciona como uma espécie de fio condutor que atravessa os temas das correspondências. Era na província – e por isso o título do livro – que ambos percebiam a possibilidade de agregar diferentes classes sociais, de valorizar o coloquial, o ritmo da conversa despropositada e solta, o apego a detalhes aparentemente sem importância, como os rituais cotidianos de uma refeição, uma conversa entre amigos e até a relação erótica com a mulher, elenca Moreli.

‘Brasilidade’

Outro tema recorrente era a modernização do país. Ligando-se diretamente ao que ambos pensavam sobre a província, as epístolas formaram um espaço de reflexão e revalorização da experiência brasileira diante de um processo de modernização liberal e burguês. “Vemos aqui o desenho de uma época que elabora matrizes da brasilidade que seriam fundamentais para dar um sentido concreto à ideia de nacionalidade”, explica a pesquisadora.

Essa formação de um possível pensamento nacional está documentada nas cartas sob a forma de discussões acerca do que estavam escrevendo. Casa-grande & senzala (1933), por exemplo, foi enviado a Bandeira, que recebeu os manuscritos, fez revisões e comentários nas cartas. O poema Evocação do Recife, por sua vez, foi muito elogiado por Freyre. Pode-se citar ainda uma carta toda desenhada pelo poeta, em que ele elaborava uma paisagem vista da sua janela, definida por ele como “feijoada completa”. Para a pesquisadora, esses são alguns elementos que fazem das cartas “uma espécie de biografia de obras fundamentais”, em que se enriquece a percepção do processo de criação de obras basilares do modernismo brasileiro.

Ademais, o interesse de Manuel Bandeira pelos “elementos desprezados da história oficial”, como a cultura africana, indígena e popular, consolidou-se por sua aproximação com Gilberto Freyre e “seus convites para sentir a dinâmica do cotidiano e os elementos recalcados pela história oficial”, diz Moreli. Foi o sociólogo quem apresentou autores anglo-americanos a Bandeira, e também quem estimulou sua faceta de tradutor.

Mas não eram apenas de temas intelectualizados que tratavam os pensadores pernambucanos. Em seus diálogos, percebe-se o profundo interesse em temas do cotidiano, nas dinâmicas da vida corriqueira, em lançamentos culturais, nos encontros com amigos. Ao mesmo tempo, como nota a pesquisadora, Manuel Bandeira era capaz de tecer considerações precisas sobre debates políticos da época e discorrer, ironicamente, sobre cenas em que seus amigos figuram como personagens de crônicas, como o escritor José Lins do Rego e o pintor Cícero Dias.

Para além das cartas, a pesquisadora vê nessa relação a construção de um espaço de grande amizade, como atestam os diversos livros autografados com que eles se presenteavam. “Esses autógrafos permitem ampliar a percepção das trocas no universo literário, político, cultural, as quais, por sua vez, brotam em meio a códigos peculiares da esfera da intimidade dos missivistas”, diz. “São dimensões que não se separaram, ao contrário, se fecundam mutuamente e se ampliam.”

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