Uma carta para a próxima geração de nós
Da esquerda para a direita, Neon Cunha, Marcinha do Corintho, Pedro Bial e Gretta Starr (Foto: Sergio Fernandes/Sesc)
Recebo com alguma frequência pessoas que se veem em mim em busca de conselhos para uma transição mais leve.
E eu sinto ser o portador da má notícia, mas, no CIStema em que vivemos, transicionar nos põe numa posição um pouco distante de qualquer leveza.
Havia mais de sete anos, quando eu ainda era socializado como mulher, não conseguia projetar minha velhice simplesmente por não me ver como velha; depois que me entendi enquanto Nando, a projeção da minha velhice continuou numa realidade bem distante. Afinal, nunca em minha vida eu havia visto alguém igual a mim que tivesse conseguido chegar lá.
Minhas referências transmasculinas eram mais ou menos da minha idade e, de alguma forma, estavam começando a ser experimento, assim como eu.
Mas, ao mesmo tempo da procura de quem tinha chutado a porta para nós podermos existir, havia figuras que se arriscavam para que pelo menos quem tivesse chegado agora pudesse construir essa história aos que estavam por vir. E se não fossem essas figuras, travestis e mulheres trans que, por anos, tomaram a frente da construção da história de pessoas trans e travestis, talvez não só a velhice, como também a nossa possibilidade de existência não passassem de um imaginário utópico.
Em novembro, participei de um seminário com figuras enormes e lembrei daquele Nando que, sete anos atrás, não enxergava a velhice.
Vi um transmasculino de 65 anos sentado na minha frente contando a realidade de transicionar na ditadura militar.
Estive no mesmo espaço de travestis e mulheres trans que, como diz Neon Cunha, são marcos históricos para a nossa existência. Fomos a um boteco, enchemos aquele lugar de travestis não bináries e transmasculines, e fomos servides por pessoas cis enquanto vivíamos simplesmente em grupo.
E, hoje sim, consigo aconselhar aqueles que têm a chance de pedir conselho a quem veio antes.
Transcentrem!
Estejam entre nós, dediquem seus afetos a corpos semelhantes, dissociem-se do formato cis, criem uma nova perspectiva de convivência que contemple nossos corpos e entregas, e não se rendam a esse esquema assassino de vida criado por pessoas cis.
João Nery, um dos nossos transcestrais, já dizia que “viver uma mentira é enlouquecedor”, e eu acrescento que viver um esquema cis é cooperar com nosso extermínio.
Eu não conseguia imaginar espaços abarrotados de pessoas iguais a mim e hoje sei que essa será a nossa revolução. Hackear, ocupar, garantir espaços que também são nossos e romper com o estilo de vida que nos mata.
Emociono-me escrevendo e lembrando tudo o que vivi nesses últimos dias.
Obrigado a todes que fizeram o sonho de uma galera se concretizar.
Hoje, finalmente, consigo conversar com o Nando de 70 anos.
Fernando Maldonado de Melo é parte da porcentagem da evasão universitária pelo fato de o sistema não ter sido pensado para receber pessoas trans, proprietário da marca Cara Gente Cis, e ativista do movimento trans e travesti.