Cannes 2024, dia 8: “Marcello Mio” e “Anora”

Cannes 2024, dia 8: “Marcello Mio” e “Anora”
Chiara Mastroianni em Marcello Mio (divulgação)

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Alguns projetos parecem desde o início fadados a dar errado, e, embora alguns filmes consigam subverter as expectativas (como Emília Pérez e Caught by the Tides, exibidos recentemente em Cannes), a maioria não tem a mesma sorte. É o caso de Marcello Mio, longa de Christophe Honoré na disputa pela Palma de Ouro.

A ideia base é simples: explorar cinematograficamente a semelhança física entre Chiara Mastroianni, filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve, com o seu pai. O filme tenta fazer uso dessa característica da atriz explorando-a ao máximo possível, mas para essa proposta se converter em um longa-metragem, seria preciso desenvolver um roteiro que abarcasse essa premissa imagética indo além.

Honoré tentou, então, elaborar uma história em que Chiara tivesse dificuldades de se impor profissionalmente por viver à sombra dos pais. Uma das formas de romper com isso seria entrar em termos com a figura de Marcello, morto em 1996.

É uma premissa enganadora e injusta com a atriz porque Chiara, já há anos, conseguiu se estabelecer no cinema francês pelo próprio talento sem precisar lembrar o tempo todo que é “filha de alguém” – o próprio Honoré contribuiu bastante para isso, dando-lhe alguns de seus melhores papeis. Mas ok: entende-se que a proposta não é falar da Chiara real, mas uma variante da atriz. Ainda assim, no entanto, o filme não consegue transformar a ideia-base em algo que se pareça com um roteiro. O que se vê é uma sucessão de cenas em que Chiara surge tentando verificar até que ponto ela de fato se parece com o pai – chega a se caracterizar de Marcello com seu visual em (1963), de Federico Fellini, e sai pelas ruas, falando em italiano e pedindo para ser chamada pelo nome do pai.

Ela de fato é a cara de Marcello, mas também a de Catherine, e isso é verificável em qualquer filme de que Chiara já participou; não era preciso fazer um inteiro só sobre isso. A desculpa de Honoré é prestar uma homenagem a Marcello, relembrando situações e fazendo citações visuais a alguns de seus principais filmes. Mas mesmo nisso o longa é falho; não tem proximidade alguma com o universo do ator.

Poderia até ser um canto de amor a Chiara, mas ela é inserida em cenas de conceito tão vaporoso e débil que não há comoção alguma em ver a filha tentando se reconectar com o pai; é acima de tudo um constrangimento vê-la em uma versão de si mesma tão desbotada e menor do que ela é na realidade.

Também na disputa pela Palma de Ouro, o estadunidense Sean Baker levou à Croisette um dos filmes mais engraçados até o momento. Ainda que de ritmo descalibrado, muitas vezes com cenas que se prolongam sem haver necessidade disso, Anora mostra uma prostituta de Nova York que conhece o filho de um casal milionário russo a passeio nos EUA. Ela dá sorte, porque o rapaz é mão aberta e vai com a cara dela – os dois chegam a ir para Las Vegas e, na empolgação, trocam alianças.

Por praticamente uma hora, o filme não tem nenhum conflito: tudo corre às mil maravilhas, com Anora se divertindo com o jovem riquinho, que é tão inconsequente quanto amoroso. Vê-se que ela não o ama, mas que desenvolve um afeto real pelo rapaz, e o fato de a dupla passar tanto tempo do filme feliz, sem contratempos, é bastante agradável – é um alívio para o público de vez em quando se deparar com um drible como esse aos manuais de roteiro, que pregam que conflitos precisam obrigatoriamente surgir na trama a cada 15 minutos.

Mas, é claro: em algum momento a pobre Anora percebe que tudo aquilo era tudo bom demais para ser verdade. Seu sonho de princesa não dura tanto assim.

Mikey Madison interpreta a protagonista com garra e graciosidade – talvez ela berre com excessiva estridência, mas é uma atriz sempre cativante, uma heroína inusitada. E Mark Eldenstein, no papel do russo, é um pequeno dínamo em cena – é fisicamente um Timothée Chalamet ainda mais franzino, mas menos calculado e com um senso de autoironia mais desperto; quando ele e Madison estão juntos em cena, é impossível o casal não ganhar a torcida do espectador.

Baker já soube dosar melhor a duração das sequências de seus filmes, mas em Anora ele continua a fazer observações sociais certeiras, desta vez com um senso de humor mais aflorado que de hábito. É mais um trabalho que vem reiterar que seu cinema está entre os mais interessantes realizados nos EUA hoje em dia.

Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema


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