Cannes 2024, dia 9: “Motel Destino”, “Parthenope” e “Grand Tour”
Cena de "Motel Destino"
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O cearense Karim Aïnouz passou pelo tapete vermelho de Cannes na noite da quarta-feira, dia 22, com o único longa brasileiro na briga pela Palma de Ouro. Motel Destino foi exibido na Croisette exatamente um ano depois de Firebrand, produção britânica também dirigida por Aïnouz e apresentada na mostra competitiva, mas recebida com frieza no evento de 2023.
Apesar das altas expectativas brasileiras, seu novo longa também não obteve uma recepção das mais calorosas – houve até um princípio de vaia em uma das sessões para a imprensa, embora o predomínio tenha sido de aplausos tímidos.
É a história de um rapaz habituado a pequenos delitos, Heraldo (Iago Xavier), que precisa se esconder por uns tempos descobre que pode fazer isso em um motel isolado, onde arranja emprego e passa a morar. Ali, ele se envolve com a fogosa Dayana (Nataly Rocha), casada com o dono do imóvel, Elias (Fábio Assunção), um sujeito grosseiro e violento que agride a mulher.
Desde o início, há um interesse mútuo entre Heraldo e Dayana, que passam a viver um romance tórrido. É claro, às escondidas de Elias, que, apesar de ser um homem extremamente ciumento e possessivo, no fundo talvez se excite com a ideia de dividir a cama com a esposa e com o novo funcionário.
O filme faz uso de cores intensas para transmitir a atmosfera sexualmente carregada daquele motel. As roupas de cama são de um alaranjado quase fosforescente, e, na primeira cena em que Heraldo faz sexo no local, as imagens são apresentadas sob um filtro vermelho berrante. De fato, o espectador é contaminado pelo calor daquele local, mas algumas imagens são de cromatismo tão exacerbado que chegam a doer os olhos de quem vê – não é à toa que, no começo, o longa apresente uma mensagem de alerta sobre o uso de cores e luzes com potencial de causar desconforto em pessoas sensíveis.
Fabio Assunção tem uma excelente performance como o asqueroso dono do motel, um tipo inusitado em sua carreira de galã de telenovela; é ele quem domina o filme como o seu detestável Elias. Nataly Rocha tem uma presença cênica sempre exuberante. É uma pena que o Heraldo de Iago Xavier funcione tão bem nas primeiras cenas, mas depois desande; talvez por falta de orientação, o ator perde o domínio sobre o personagem, com o decorrer da trama.
Motel Destino é um filme agressivo, com uma sexualidade que não teme violentar o público, e embora isso possa ser visto como algo positivo (os personagens não estão no altar que os melodramas habituais de Aïnouz costumam reservar a eles), talvez seja o que explique uma certa falta de identificação do espectador com o trio que domina a tela. É um filme sobre sentimentos extremos, mas que nunca dá indícios de qual exatamente é o seu propósito.
O roteiro tem debilidades imperdoáveis que vão da inverossimilhança de algumas cenas (sobretudo o trecho logo após a morte de um turista francês) à má aplicação de certas ideias. (O riso nervoso de Dayana diante de situações tensas não desemboca em absolutamente nada.)
Mas o pior é a tentativa repentina de adoção de um tom forçadamente politizado quando o filme quer sair em defesa de Heraldo, que diz com ares de solenidade: “eu nasci, e depois disso o que tenho feito é apenas fugir da morte.” Ele tem razão, mas isso está longe de ser o centro de Motel Destino, que parece recorrer a essa fala sobre a condição de homem negro e pobre de Heraldo e à denúncia da agressão de Elias à mulher meramente como dados para servir à fluência do roteiro, e não como temas a serem genuinamente debatidos. No todo, é um filme bem conduzido, mas de indisfarçável vacuidade.
Também na briga pela Palma de Ouro, o italiano Paolo Sorrentino apresentou Parthenope, nova homenagem do cineasta a sua Nápoles amada. O título se refere a uma criatura mítica associada à fundação da cidade, que no filme é personificada em um corpo feminino. O longa acompanha a napolitana Parthenope, de extrema inteligência, mas infeliz e perseguida por traumas. Seu irmão, que a amava de maneira incestuosa, um dia comete suicídio, e isso marca profundamente a jovem, que é mostrada no filme em busca de realização profissional e afetiva.
Digam o que quiserem sobre Sorrentino, mas seu grande valor e sua distinção enquanto diretor é a capacidade de criar uma estilização do mundo real em um universo muito peculiar sem medo de ser maneirista ou excessivo. Em seu último longa, A Mão de Deus (2021), conseguiu conciliar muito bem esse seu estilo com um tom personalista e uma narrativa envolvente. Em Parthenope, ele se contém de maneira inesperadamente disciplinada e faz um filme com um lirismo elegante, melancólico, que transparece até uma certa maturidade. Mas, com isso, seu cinema perde grande parte de sua força: o vigor, uma de suas grandes marcas.
Ainda na disputa pela Palma, o cineasta português Miguel Gomes estreou em Cannes seu Grand Tour, longa em que utiliza imagens documentais que ele próprio produziu durante uma longa viagem por países asiáticos, misturando-as com cenas de ficção, passadas nos mesmos lugares, mas no começo do século 20.
A trama mostra um diplomata britânico, Edward, que mora há tempos na Birmânia (hoje Mianmar). Sua noiva deixa a Inglaterra e vai para a Ásia atrás dele, para finalmente trocarem aliança, mas o rapaz decide de última hora por não a encontrar – chega até a ir ao porto onde deveria recebê-la, mas acaba comprando uma passagem e vai embora para Singapura.
A partir daí, Edward começa um perambular sem rumo definido, sempre com o propósito de evitar o reencontro com a noiva. Assim, de improviso em improviso, ele passa por países como Tailândia (então chamada de Sião), Filipinas, Japão e China. Em cada lugar, interage com pessoas distintas, e o filme entremeia imagens do inglês em cada novo local com as cenas documentais feitas por Gomes nos anos 2020, ilustrando com aspectos modernos o que é dito sobre os personagens.
As cenas fictícias, em preto e branco, têm uma beleza muito especial. Meio rudimentares e expressivas. Mas os trechos contemporâneos são quase sempre mais impactantes. Há um instante em que Edward está em Manila, em um período em que leva uma vida boêmia e o diretor insere trechos das Filipinas atuais, com destaque para um homem cantando My Way em um karaokê local. Indo aos prantos antes de voltar a afogar as mágoas no álcool.
Se na primeira metade o foco é em Edward, na segunda parte do longa o filme se concentra na trajetória da noiva, Molly, indo atrás dele. Ela sabe que o namorado talvez não queira mais se casar, mas insiste em persegui-lo assim mesmo, e acaba passando pelos mesmos locais.
A fórmula de intercalar cenas da ficção com os dias atuais perde significativamente seu impacto nessa segunda parte. O filme se torna dolorosamente fastidioso; a personagem feminina não nos dá substrato o suficiente para seguir sua viagem com real interesse; não há justificativa para ela ir atrás do sujeito covarde que a abandonou.
Gomes nunca é literal em suas intenções, mas fica claro que ele pretende com seu filme falar de alguns temas de sempre, como o colonialismo e suas implicações na sociedade moderna dos países colonizados. Mas não há muita clareza sobre em que medida o drama pessoal da dupla Edward-Molly se conecta com essa questão histórica. O filme trabalha em um nível de abstração um bocado difícil de penetrar, o que pode ser distanciador, mas existe um poder cumulativo nas imagens e na cadência narrativa do longa que, mesmo que a experiência seja bastante penosa na segunda metade, ainda assim o longa chega ao fim com contundência. Não é um filme facilmente esquecível – Gomes mostra que ainda domina muito bem seu cinema.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema
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