Cannes 2024, dia 7: “The Apprentice” e “The Shrouds”
divulgação
.
É interessante que só agora alguém tenha feito a sério um filme sobre Donald Trump. É uma figura de trajetória curiosa, e ele mesmo um sujeito tão esquisito e (ainda assim) autoconfiante que, gostando-se ou não, é preciso reconhecer: trata-se de uma figura cinematograficamente valorosa. Mesmo que pelo ridículo de sua pessoa e seu risível aspecto pavoneado, existe em Trump um elemento de espetáculo, ainda que em um princípio de atração meio doentio, semelhante ao de um número de um circo de horrores.
The Apprentice, que briga pela Palma de Ouro, mostra Trump entre meados dos anos 1970 e fins dos anos 1980, desde quando trabalhava com o pai no ramo imobiliário em Nova York até o momento em que já era o milionário mais midiático da Big Apple. O longa é dirigido pelo iraniano (que fez carreira na Dinamarca) Ali Abbasi, já acostumado a falar de pessoas estranhas: a pessoa com alteração genética em Border (2018), o serial killer de Holy Spider (2022).
E ele mesmo tem uma maneira inusitada de filmar – embora The Apprentice se passe na alta elite de Nova York, com carrões, apartamentaços e escritórios sofisticados, o filme parece sempre trazer um elemento pegajoso, de produção B – ou, no mínimo, uma obra que pode até ter tido orçamento, mas que mantém uma certa vulgaridade, um podridão envernizada, bem ao estilo asqueroso do próprio Trump, em sua cafonice e grosseria indisfarçáveis.
O filme começa apresentando Trump como um almofadinha desde sempre sem muito caráter, mas no início ainda preservando certa ingenuidade, talvez até pureza, quando conhece o advogado Roy Cohn, que logo se tornará seu grande ídolo e modelo de comportamento.
Cohn ficou famoso após conseguir a condenação à morte do casal Julius e Ethel Rosenberg por espionagem, e o filme expõe sua tática agressiva e desonesta para ganhar seus casos, geralmente envolvendo corrupção e chantagens de todo tipo. O problema é que Trump aprende muito bem e com rapidez as lições de Cohn, a ponto de se tornar um monstro ainda pior que ele. Quanto mais rico e poderoso fica, mais arrogante e boçal ele se torna, a ponto de virar uma pessoa assustadoramente irrefreável.
O ator Sebastian Stan faz uma ótima progressão entre o jovem Trump e a aberração alaranjada que o presidente se tornaria anos depois, e a Ivana de Maria Bakalova é espalhafatosa e humana na medida em que o papel exigia. Mas o grande destaque é Jeremy Strong, como Cohn – aqui, ele fisicamente lembra muito Al Pacino, que aliás já viveu o advogado na série Angels in America, só que em chave mais expansiva. Strong, por sua vez, compõe o personagem com uma intrigante suavidade; é um homem duro, mas afável e, apesar de sua crueldade nunca ser camuflada, há espaço ali para observarmos um homem bastante vulnerável. Algo que Trump simplesmente nunca foi, a não ser quando o assunto é sua vaidade.
The Apprentice não é um filme completo sobre Trump e menos ainda sobre o trumpismo. É um retrato de um sujeito pequeno que se torna grande, mas que só diminui enquanto cresce. É uma obra bem-sucedida – e que vem a calhar com a proximidade das eleições nos EUA.
Também na briga pela Palma de Ouro, o canadense David Cronenberg foi mais um dos cineastas veteranos a decepcionar nesta 77ª edição de Cannes. The Shrouds traz o elemento cronenberguiano por excelência: o fascínio pelo corpo humano em degradação, mutilado – o perecimento físico enquanto motor para movimentar a imaginação e a sexualidade dos personagens. Vincent Cassel interpreta o ambicioso proprietário de um cemitério que desenvolve um tipo de lápide em que uma tela de vídeo mostra aos parentes e amigos do morto o seu atual estado de decomposição. Sim, é uma ideia bastante mórbida, mas para muitas pessoas é uma forma de se manter próximas de quem não está mais vivo.
Quando ele perde sua mulher, vitimada por um câncer devastador, tem dificuldades para lidar com o luto. Ao observar o corpo sepultado da amada, percebe que pequenas estruturas de natureza desconhecida têm se multiplicado pelo seu cadáver, e essa é apenas uma das esquisitices que farão o protagonista investigar melhor o que aconteceu com sua mulher.
O longa é estático, emperrado. Cronenberg falha aqui em um domínio em que quase nunca se atrapalhou em sua carreira: não consegue fazer seu filme sair do lugar. E quanto mais a trama se torna complexa, menos The Shrouds consegue transmitir a sensação de que conseguirá estabelecer saídas para as confusões que o próprio roteiro aprontou. Sem muito o que fazer, Cronenberg usa humor em algumas cenas e recorre a fórmulas antigas sobre fisicalidade humana e desejo sexual bizarro. Mas o filme é irresolvível e destinado ao fracasso – e, ao fim, é exatamente o que ele é.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema