Cannes 2024, dia 6: “Lula”, “Limonov: the ballad” e “The Substance”

Cannes 2024, dia 6: “Lula”, “Limonov: the ballad” e “The Substance”
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Oliver Stone nunca foi uma unanimidade. Sua crítica ferrenha à Guerra do Vietnã em Platoon (1986), por exemplo, pode até ter lhe rendido o Oscar, mas lhe trouxe inúmeras dores de cabeça diante de um público estadunidense mais patriota e conservador. JFK – A Pergunta que Não Quer Calar (1991) também gerou controvérsia, embora menos que Assassinos por Natureza (1994), cuja violência nua e crua arremessou na cara dos americanos um espelho que os EUA não estavam preparados para observar.

Com seus documentários mais recentes, envolvendo figuras políticas, não tem sido diferente, e é claro que Lula, o longa que o diretor apresenta agora em Cannes, também há de acumular tanto admiradores exaltados quanto detratores furiosos. O atual presidente do Brasil é apresentado em um retrato bastante simpático de sua trajetória. Sua luta e seus feitos pelo país, sobretudo em seus dois primeiros mandatos. O longa tem por base uma entrevista concedida ao cineasta 2022, alguns meses antes das eleições que o levariam pela terceira vez ao Palácio do Planalto.

Stone, que divide o crédito de direção com Rob Wilson, usa uma narrativa linear e didática para explicar ao espectador todo o processo político pelo qual o Brasil tem passado desde o começo dos anos 1960, começando pela deposição de João Goulart, seguindo pela ditadura militar, a abertura e os governos do PT (deixando de fora os anos FHC) até a ascensão da extrema direita no começo dos anos 2010.

Mais do que a história de Lula propriamente dita, é um panorama sobre o Brasil dos últimos 60 anos, a partir de um viés de esquerda, mas com uma preocupação em relatar os meandros de como a política brasileira se complexificou desde que o atual presidente se elegeu pela primeira vez em 2002.

Os detratores hão de reclamar que o filme não dá voz às partes implicadas que não apoiam a visão política de Lula, mas o filme deixa claro que não tem confiança alguma em quem defende um projeto de país que não coincide com o endossado pela esquerda. O longa fala mal de Bolsonaro, é claro, mas pega ainda mais pesado com Sergio Moro, sem a menor pretensão em ouvir a versão do ex-juiz de Curitiba sobre todo o processo da Lava-Jato. Para Stone, tanto Bolsonaro quanto o seu ex-ministro da Justiça são pessoas cujas narrativas não têm o menor interesse; o que cada um deles defende já é, por si só, incompatível com a visão de mundo progressista e inclusiva do cineasta, então ele faz o seu filme da maneira que acha melhor e ouvindo quem pensa valer a pena escutar.

O filme presta, assim, uma homenagem a um Lula por quem Stone guarda claramente certa admiração apesar de ser imperfeito, mas que, sem dúvida, é uma grande liderança na visão do diretor.

A política também é o pano de fundo, ainda que de forma mais suavizada, em um filme apresentado na disputa pela Palma de Ouro nesta segunda, dia 20. O cineasta russo Kirill Serebrennikov, inimigo declarado do governo Vladimir Putin, exibiu Limonov: The Ballad, drama sobre a história do poeta Eduard Limonov, morto em 2020.

O protagonista é apresentado como um sujeito marginal, contrário a tudo. No começo, diz-se que é visto por alguns como defensor da União Soviética, e por outros como inimigo do país, sendo que ele mesmo não se considera uma coisa nem outra. O longa o mostra sobretudo na década de 1970, quando morou em Nova York. Primeiro como artista maldito, mais preocupado com sexo e em ter um estilo de vida meio dândi do que propriamente com político. Mais tarde, após uma desilusão amorosa, surge mais discreto, vivendo como uma espécie de mordomo informal no apartamento de um intelectual nova-iorquino. Também ali ele não quer saber muito de política. Não parece ter real interesse por nada, na verdade; talvez apenas por Elena, a mulher que o abandonou, mas mesmo essa paixão obsessiva talvez seja antes uma falta de foco para outras coisas do que propriamente um amor verdadeiro.

A dúvida que fica é: se Limonov odiava política e evitava o assunto, mesmo em sua arte, por que nos anos 1980 era tido como um dos grandes intelectuais sobre a situação soviética no mundo ocidental? Ao menos no filme de Serebrennikov, em nenhum momento existe a menor justificativa para isso. O Limonov do filme é antes de qualquer coisa um sujeito absurdamente chato, manhoso e sem a menor condição de comentar qualquer coisa relevante sobre o país onde nasceu – é incompreensível que tenha se tornado alguém proeminente, em qualquer campo que fosse.

O filme é falado em inglês, mesmo nas cenas ambientadas no país de língua russa, trazendo o ator Ben Whishaw em uma performance hipercalculada, falsamente “intensa”. Se o Limonov do roteiro já não era lá uma criatura das mais simpáticas, vivido por ele se torna ainda menos interessante. Uma parte muito importante do personagem está faltando ali.

Já na obra da diretora francesa Coralie Fargeat, parece não faltar nada – ao contrário: há até um excesso, em quase tudo. Em sua fantasia feminista contra o etarismo The Substance, também na briga pela Palma de Ouro, conta com Demi Moore no papel de uma estrela de cinema decadente, que é demitida do programa de ginástica que apresenta na TV por já estar acima dos 50 anos. Mas ela descobre um método inovador de rejuvenescimento, em que pode trocar de corpo com uma versão sua bem mais jovem – o que parece positivo, ao menos até ela começar a entrar em conflito com ela mesma aos 20 e poucos anos (quando é vivida por Margaret Qualley, que já havia tido destaque em Cannes em Kinds of Kindness, de Yorgos Lanthimos).

O filme é uma comédia coloridíssima e assumidamente tola, que teoricamente seria um libelo contra a obsessão da sociedade pela juventude, sobretudo no caso das mulheres. Mas a diretora se autodenuncia: filma as cenas de corpos jovens e belos com tanto desprendimento, com tanta ênfase, que fica óbvio que o longa é meramente uma desculpa para a diretora brincar de criar imagens bonitas com aquilo que ela própria diz ser seu objeto de crítica.

O filme tem lá seus momentos engraçados e, apesar da estupidez da trama, é facilmente assistível, mas não acrescenta absolutamente nada a ninguém. Não fosse pelo excesso de enquadramentos no derrière de Qualley, seria um bom candidato a ser eternamente repetido nas Sessões da Tarde por aí.

Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema


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