Cannes 2024, dia 5: “Caught by the tides” e “A queda do céu”
divulgação
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O Festival de Cannes chegou neste domingo, dia 19, à metade, e até o momento não há nem sombra de favoritismo à Palma de Ouro. Aliás, é meio que unânime uma certa falta de empolgação dos presentes no evento com os filmes programados para a competição principal; no boca a boca, fica evidente que até agora não houve um filme com força para se destacar entre os demais.
Mas Caught by the tides, o novo longa do chinês Jia Zhang-Ke, talvez esteja um pouco além dos outros em termos de qualidade. O cineasta faz uma revisita aos seus temas, à sua filmografia e às suas obsessões de sempre: fala sobre a China pós-virada do milênio, da evacuação de uma cidade inteira para a criação de um gigantesco reservatório de água (a represa de Três Gargantas), sobre sua mulher e atriz-fetiche, Zhao Tao, interpretando uma variação das mulheres que interpretou em filmes como Em Busca da Vida (2006) e Amor Além das Cinzas (2018).
Ao que parece, Jia fez uso de cenas que não aproveitou em seus longas anteriores, juntou tudo em um novo material e, assim, surgiu seu novo filme. A montagem intercala cenas documentais da vida chinesa das últimas duas décadas, priorizando imagens de festas e de cantoria, com cenas de Zhao em filmes de diversas épocas. Desta vez, subentende-se que ela interpreta uma mulher que viveu um romance que não deu certo, que depois foi tentar a vida em uma cidade grande, fazendo bicos no mundo do entretenimento e chegando a fazer as vezes de garota de programa. Um dia, volta atrás de seu antigo companheiro, mas novamente as coisas dão errado, então ela retorna à cidade grande – onde, muitos anos depois, haverá um terceiro e definitivo encontro entre o casal.
É difícil saber até que ponto alguém que não conhece a filmografia do diretor será afetado pelo filme como os iniciados em sua obra, sobretudo na hora de reconhecer essas personagens, em uma nova versão. Mas mesmo para quem desconhece por completo o que Jia já fez é possível se comover com a história sendo contada, ainda que a narrativa não seja tão linear ou simples.
E Zhao Tao é uma atriz formidável. Ela tem pouquíssimas falas ao longo de todo o filme, mas o olhar dela é tão expressivo que não é preciso que ela pronuncie uma palavra sequer para se fazer notar e transmitir o que a personagem está sentindo. Já passou da hora de ela ganhar um prêmio importante em algum grande festival, à altura de seu excepcional talento.
O longa não agradou a todos – muita gente reclamou, dizendo que é Jia fazendo mais do mesmo, se repetindo, com preguiça de se renovar… Pode até ser, mas temos em Caught by the Tides uma obra de brilho especial. Uma auto-homenagem, por certo (o que não é em si um problema, quando se tem uma obra tão relevante como a de Jia), mas mais ainda um hino de amor do cineasta a sua companheira e ao seu país, em todos os seus problemas e suas contradições. É um filme mais rico e esteticamente marcante do que qualquer outra coisa exibida nas telas de Cannes até o momento.
Fora da disputa pela Palma de Ouro, o Brasil teve seu primeiro representante na Croisette com o documentário A Queda do Céu, dirigido por Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha. Exibido na mostra Quinzena dos Cineastas, o longa fala sobre a cosmologia ianomâmi, a partir das reflexões do xamã Davi Kopenawa, crítico ferrenho do desrespeito sofrido pelo seu povo e pela natureza diante da ambição capitalista do homem branco.
A sequência de abertura é deslumbrante: um grupo de ianomâmis caminha rumo à câmera por um terreno plano que, captado pela lente, apresenta um persistente efeito óptico que esfumaça parte da imagem e dá a impressão de que eles saem de um lago ou um lugar cheio de água – é uma espécie de “fata morgana” em plena floresta. Aliás, o filme de Rocha e Carneiro da Cunha tem uma preocupação especial com a composição das imagens, embora seu maneirismo não se sobressaia diante do que, ao que parece, é o que mais interessa aos cineastas: a mensagem a ser transmitida.
No caso, é o grito de alerta – e de fúria – de Kopenawa, também autor do livro de mesmo nome que serviu de inspiração ao documentário. Na tela, ele aparece em meio a outros indígenas durante diversos rituais, em geral falando sobre o quanto o mundo está correndo perigo diante da destruição da natureza, mas mais frequentemente ainda vociferando contra a atuação nociva dos não indígenas no próprio mundo em que vive.
Ao longo de duas horas, o filme não faz praticamente nada que não seja repetir as mesmas ideias, apenas apresentadas em ritos e formulações diferentes. O discurso do xamã casado com as imagens inebriantes captadas pelos cineastas consegue um tipo de vibração de natureza mística, quase religiosa, que é capaz de levar o espectador a um início de transe. Ou talvez seja meramente o efeito narcotizante habitual gerado pelos discursos que são infinitamente reiterados. Seja como for, o filme de fato consegue uma reação peculiar do espectador, a meio caminho entre uma elevação espiritual verdadeira e um agonizante tédio diante de um falatório reincidente.
A sessão de estreia em Cannes contou com a presença dos diretores, de Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert, co-autor do roteiro. Ao fim da sessão, em uma conversa diante da plateia, Rocha explicou que o filme fala tanto da cosmologia ianomâmi como de nós, não indígenas, e de “nosso estilo de vida fraturado”. “Vira o espelho para nós, a partir dos pensamentos de Davi”, disse.
Kopenawa arrancou aplausos calorosos ao falar ao público: “Esse filme não quer assustar ninguém, mas fala sobre o que vai acontecer”, disse, referindo-se a uma revolta da natureza diante da destruição diuturna a que vem sendo submetida. “Os invasores [de terras ianomâmis] não param, então nós também vamos continuar nossa luta. Sem os indígenas, o povo branco acaba com a floresta.”
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema