Cannes 2024, dia 4: “Oh, Canada”, “Emília Perez” e “Três quilômetros para o fim do mundo”
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O cineasta romeno Emanuel Parvu levou à Croisette neste sábado, dia 18, um drama sobre um tema delicado, que em pleno século 21 ainda assombra pessoas nos quatro cantos do mundo. Three Kilometres to the End of the World fala sobre homofobia, a partir da história de um jovem de 17 anos que vai passar uns dias na cidadezinha em que moram os seus pais. Ali, conhece um turista, com quem tem um romance. Mas dois rapazes o agridem violentamente, no meio da noite.
Na investigação que se segue, descobre-se que os agressores são filhos do homem mais rico e poderoso da cidade, a quem o pai do rapaz agredido deve dinheiro. Como não sabia da sexualidade do filho, o homem fica escandalizado, e o próprio delegado aconselha que retire a queixa contra os criminosos e que as partes entrem em um acordo – inclusive, podendo anular as grandes dívidas da família com o chefão da cidade.
No começo, ao descobrir a violência que seu filho sofreu, o pai quer punição imediata aos agressores, mas quando ele descobre que o rapaz é gay, sua fúria é canalizada para outro viés. Ele de repente passa a ter raiva do próprio filho, e segue a ideia de sua esposa de submeter o jovem a uma espécie de exorcismo – ele é amarrado pelos próprios pais e colocado diante de um padre, que executa o ritual como estivesse diante de um corpo possuído pelo demônio.
O filme é claramente bem-intencionado em sua denúncia de tradições arcaicas que ainda dominam localidades provincianas na Romênia, e por alguns instantes dá a impressão de que explorará diversas outras facetas envolvendo a repressão homossexual. Mas não é o que ocorre. O papel do pai, por exemplo, tinha tantas possibilidades a serem exploradas que é quase inacreditável que Parvu tenha optado por compor uma figura tão chapada. Mesmo o protagonista também é tratado de maneira unidimensional, algo pobre e meio preguiçosa. Three Kilometers poderia ser um filme e tanto, mas não consegue se afastar da sina que lhe reserva seu diretor: a da total mediocridade.
Também na competição, o diretor Paul Schrader apresentou o longa Oh, Canada, drama sobre um diretor de cinema estadunidense que se refugiou em terras canadenses para não precisar ir para a Guerra do Vietnã, nos anos 1960.
Richard Gere interpreta o cineasta, hoje já idoso e à beira da morte devido a um câncer incurável. Sua mulher, vivida por Uma Thurman, é quem cuida dele, dando-lhe apoio físico e servindo igualmente de norteadora para seus pensamentos confusos. Um outro diretor o convida para ser tema de um documentário, e o longa tem por base um longo depoimento que ele faz sobre sua vida, em que se perde em emoções, lembranças e sentimentos variados, inclusive culpa por como consuziu seus relacionamentos e por várias decisões radicais que tomou na juventude.
Schrader utiliza um roteiro prolixo, com idas e vindas temporais, para dar a noção de confusão mental do protagonista. Mas em vez de o longa fazer o espectador mergulhar em sua narrativa e transmitir a sensação de estar passando por algo parecido com o que acontece com a mente do personagem, o filme o afasta. Gere se esforça e consegue tornar seu personagem em algum nível atrativo, mas o filme como um todo não tem essa capacidade – e Jacob Elordi, que o interpreta em sua juventude, parece não ter sido devidamente instruído a como construir o seu papel; sua performance é monolítica. O filme termina sem dizer muito a que veio.
Seu grande tema, porém, fica claro: o acerto de contas consigo mesmo de alguém arrependido por uma série de erros ao longo da vida. Que também é o grande tópico do filme mais inusitado até o momento (mais ainda que a Megalopolis de Coppola) do festival: Emília Perez, produção mexicana dirigida pelo francês Jacques Audiard. É a história (fictícia) de um dos maiores traficantes de drogas do México, que um dia se cansa de agir no mundo do crime e decide realizar seu grande desejo de toda a vida: passar por uma cirurgia de redesignação sexual. Para isso, conta com o auxílio de uma advogada frustrada, que o ajuda a viabilizar as formalidades do procedimento médico de modo que ninguém descubra nada.
Após se tornar uma mulher inclusive em termos legais, Emília procura reparar parte do mal que fez à sociedade mexicana ao longo de décadas no narcotráfico, ajudando famílias a encontrarem os restos mortais de seus filhos, mortos pela guerra das drogas.
O filme é um melodrama carregado, com inserções musicais de melodias, letras e coreografias aflitivamente capengas. Tudo é de um mau gosto inenarrável, mas a ideia é essa mesma: a partir desses elementos grosseiros, cafonas, o filme aposta todas as suas fichas na filosofia do “é tão ruim que se torna bom” – e, aqui e ali, Audiard de fato consegue atingir seus objetivos. É gostoso rir do filme – e junto com ele.
É claro que é preciso ter tolerância e fazer vistas grossas a todo tempo, mesmo que fique claro desde o início que o longa não busca requinte ou sofisticação: entrando no jogo, é possível achar Emilia Perez um passatempo divertido. Mas sem esse nível de abstração, a experiência pode ser um bocado irritante, quando não insuportável.
Ainda assim, o longa é candidato a se tornar um sucesso popular no boca a boca, inclusive pela presença estelar de alguns nomes no elenco, como Zoe Saldaña e Selena Gomez. Muito embora quem brilhe mesmo seja a protagonista, a atriz trans espanhola Karla García Gascón, que tem chances reais de se tornar a primeira pessoa transgênero a ganhar um prêmio de atuação em um grande festival de cinema internacional.
Bruno Ghetti é jornalista e crítico de cinema
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