Caetano (com Roberto Schwarz, e para além dele…)

Caetano (com Roberto Schwarz, e para além dele…)

 

Tendo que explicar a um amigo que não conhecia a música de Caetano Veloso, e ainda há quem não a conheça, qual o sentido e a orientação da coisa toda, o valor de seus múltiplos valores, elaborei para mim próprio um esquema que permitisse algum esclarecimento. Para além da inteligência especial para os elementos íntimos, as soluções particulares, da forma canção, as sacadas formais precisas e simples do compositor, penso que seu trabalho, seu pensamento pela canção, se organiza ao redor de quatro eixos, que são eles mesmos multiplicados em variações e deslocamentos para mais perto ou mais longe de seu centro. Poderíamos pensar como se estes vetores compusessem um campo espacial onde cada canção está mais próxima ou mais distante de um ou de outro deles, cada uma em sua precisa posição em relação ao todo, multiplicado pelas partes.

O primeiro dos eixos é a pesquisa ampla da forma Brasil, que tem historicidade, e que se expande até a configuração de pesquisa da forma do próprio mundo, e mesmo da história. São canções como Tropicália, Triste Bahia, Haiti, Fora da Ordem, Perdeu, Sexo e dinheiro. Nesta região se articula a crônica mais viva do presente, a cada momento histórico do percurso do músico/sujeito em sua sociedade em rápida modernização, em uma época difícil, de canções como Alegria alegria, Tigresa, Sampa, ou, por exemplo, as recentes Baixo Leblon e Neguinho.

O segundo eixo é o do lirismo intenso, autoerótico e moderno, mas também por vezes negativo e melancólico, lirismo que se expande até tocar a matéria da vida brasileira, popular, ou populista, contaminando-a com o valor especial que o eu tem para o músico, em um movimento que produz erotismo e graça sobre o próprio mundo. Deste tipo são Objeto não identificado, Lua de São Jorge, Cinema transcendental, London London, Odara, e tantas outras.

O terceiro vetor é a pesquisa poética alta, de espécie de temas de essência e de questões humanas universais, modo de dar nome moderno aos grandes sentidos, de maneira tão nítida, e infernalmente inteligente, que por vezes chega a iludir perfeição. É a grande pesquisa da poética moderna que está em jogo aqui. Oração ao tempo, Cajuína, Terra, A tua presença, O ciúme, Pecado original e mais algumas outras.

O quarto eixo de Caetano é o vanguardismo estético, experimentalista, que evoluiu das estratégias pop e problemas ligados à modernização atrasada e heterogênea brasileira, então dita tropicalista, do final dos anos 60, para o estranho hipismo telúrico, muito experimental, sem medida prévia alguma ou norte que não a própria experiência dos discos radicais dos primeiros anos de 1970, Transa, Araça azul e Jóia e que, por fim, a partir do anos de 1980 e 1990, decaiu para um som pós-moderno de tonalidade world, muito menos interessante que as pesquisas sem classificação anteriores, pelo menos para o meu gosto.

Mas a principal característica desta obra, a sua marca própria, é o seu lirismo dialético, a pulsação muito erótica de um eu que se celebra na mesma dimensão em que equaciona as dimensões do seu mundo. O eu celebrado por se encontrar no mundo que encanta, ou o eu que encanta o mundo, e por isso celebra a si próprio, é a liga central deste artista. O amor de Caetano Veloso pelo próprio eu, que esparrama como potência, desde si, um amor pelo mundo, “que não é chato”, e que é erotizado quase utopicamente pelo artista, faz de sua obra uma imensa experiência de sedução. E também, neste movimento, de refluxo do sentido do mundo sobre o eu, e de espalhamento, com grande rigor estético, do eu sobre o mundo, anuncia-se o movimento mais geral de substituição da política pelo corpo, pelas questões identitárias e pelo erotismo do mercado.

Roberto Schwarz está certo sobre a dessolidarização compulsória de Caetano Veloso, e sua correspondência com o nosso tempo. Mas, o contato amoroso com o povo brasileiro continuou existindo. A razão que discrimina de Roberto ensina as pessoas a lerem, e lembra a natureza da exigência intelectual em um mundo que a abandonou de todo. No entanto, mas… Caetano quase enlouqueceu, de modo calculado como happening estético ao final de 1968, e de modo real, pela natureza da violência e da estranha tortura que sofreu nos meses de prisão. Não há dúvida que a ruptura com o passado vinculado ao destino dos pobres no Brasil também foi para ele um transe, como o do intelectual mais velho de Glauber Rocha. Talvez um transe de outra natureza, transa. Mas a liquidação sumária do assunto, que Roberto percebe com precisão em seu livro, de fato choca. Mas, na história de sua música esta liquidação não se deu.

O Caetano Veloso branco, o Caetano Veloso de Londres, Transa, Araça Azul, Bicho, os discos dos primeiros anos 1970, são obras de imensa melancolia e profundidade histórica, que indicam claramente o horror real do Brasil e flertam com o mito romântico da contracultura, que podia mesmo, inconscientemente, encontrar o mito da natureza, conservador, do primeiro romantismo brasileiro. Há algo de estranho no hipismo telúrico de Caetano: o seu indianismo setentista experimental e contracultural, no tempo da maior repressão, se aproximando do mito da natureza do Brasil de um José de Alencar. O camaleão de Caetano Veloso, ou a camaleoa, permite sempre um mas, e há alguma dialética nisso, o que Roberto também sente. Muito raramente um artista foi tão amado pelas pessoas.

O modo com que Caetano concebeu a realidade fetichista e o sujeito vazio, disponível para tudo, menos para a crítica, em 1967, não foi compreendido pela esquerda de então. A esquerda de hoje aderiu inteiramente a ele.

Alegria alegria, e os três acordes de guitarra, que alguém poderia dizer pré-punks, que abrem a canção. Aqueles acordes confrontavam e faziam tábula rasa das volutas imensas dos violões de Edu Lobo e de Geraldo Vandré – que cantavam seus pescadores e boiadeiros concebidos em escala de Portinari – e das harmonias muito desenvolvidas de Chico Buarque – com sua gente humilde e bandas passando, por seu lado, de estética bandeiriana, e sua elegante parceria, entre modernos, com Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

Os três acordes muito toscos e de choque de Alegria alegria eram a anunciação triunfal e irônica, como as formas da música antiga que anunciavam o corpo do rei, da própria superioridade de visada histórica do jovem artista para o mundo como ele se daria desde então, a partir do terror histórico dado, baixo e excitado. Ao mesmo tempo, a música portava, de modo cifrado, expresso como roquinho, uma paródia de uma marcha rancho, antiga, do mundo de A banda, mundo na iminência do próprio desaparecimento. De fato, aquela canção era uma forma na iminência. Nela se afirmou precocemente simplesmente o destino real das coisas: se entregar, se atirar, sem destino, ao puro destino das mercadorias. Coca-cola, Brigite Bardot, guerrilha, todas as revistas do mundo. Caetano realizava o diagnóstico, irônico, cheio de alegria e preguiça, assumindo uma posição insolente e provocadora, cool, então desconhecida por estas bandas, e oferecia a chave do segredo dos novos tempos, do mercado e seu efeito euforizante, narcotizante, que emergiria fortemente a partir de 1970. Ele criava uma ponte estética real para ele. A esquerda, que levou trinta anos para entender aquilo, completou plenamente o gesto de Caetano Veloso no governo Lula.

Quero ver Irene rir. Do ponto de vista do afeto, a música de Caetano Veloso despontou no horizonte do Brasil como um objeto não identificado.

Caetano Veloso é o nosso Goethe?

Não temos tempo de temer a morte. O desprendimento de Caetano Veloso em 1968, 1969 e 1970. Faz muito sentido a evocação de Sartre no verso sem lenço, sem documento. Era uma referência da época, mas transformada em uma ética e um afeto tão puros, tão radicais, que não conheceu paralelo no Brasil. Foi Caetano o jovem que cantou a disponibilidade de princípio para tudo de sua geração, que de fato constitui um sujeito, e creio que, por isso ele foi preso. Em 1970, numa música perdida, de um disco heterogêneo de Elis Regina, um importante documento – marcado pelo moderno ultrapassado, que envelhecia a passos largos, da bossa afro de Baden Powell, pelo novo kitsch popular que se generalizava ao redor, de Joyce, Edson Alencar e de Hélio Matheus e pela modernidade sintética e aguda dos novíssimos Caetano e Gil, tudo ao mesmo tempo e agora, em uma espécie de ornitorrinco estético da modernização acelerada da MPB, muito sugestivo do próprio país, e cujo título, …Em pleno verão, em pleno 1970 brasileiro, dizia muito da má concepção da coisa… – Caetano Veloso ainda uma vez dá voz forte ao gesto de liberdade para a existência, no momento mesmo do maior perigo e da máxima violência. Por que, lá onde há perigo cresce a salvação:

Tenha medo

Não
Tenha medo não
Não tenha medo

Não
Tenha medo não

Nada é pior que tudo

Nada é pior que tudo

Nem um chão
Nenhum porão
Nenhuma prisão
Nenhuma solidão

Nada é pior que tudo
Que você já tem
No seu coração

Mudo

O convite central da canção, política, existencial e psicanalítica, convite amoroso para a aceitação de toda a experiência de uma geração, dito para si e para o mundo, é não tenha medo, mesmo diante do terror e da morte que cercava o tempo. Ele ecoa o mamãe mamãe não chore, diante dos perigos do mundo dos jovens que aceitavam plenamente a experiência e o embate com a vida brasileira; o vamos passear na avenida presidente Vargas, de “Enquanto seu lobo não vem”, com fundo de toques de clarins militares e sirenes que indicavam que o lobo era bem outro, em um espírito de a bout de soufle melancólico em uma plena ditadura militar terceiro mundista; e o muito forte atenção ao dobrar uma esquina, atenção menina, é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte… Esta liberdade acintosa, dado o peso da regressão imensa da cultura conservadora, era a vida crítica e experimental de uma geração disposta a tudo por seu próprio espírito, aqui, livre, inteligente e erótico. E corajoso.

Ela dava voz ao espírito de justiça e heroísmo da esquerda, na passagem histórica trágica, mas também se revertia rapidamente em espírito de liberdade e confronto estéticos com tudo. Seja marginal, seja herói: esta voz pura da vida radical servia, simultaneamente, às duas vanguardas diferentes, ela era o espírito de dois projetos que cindiram ­– com a morte, com a tortura e com o mercado injusto, mas eficaz – dois projetos que em algum momento estiveram unidos. E por isso, em Alegria, alegria uma canção também concebida neste espirito, mas orientada para o novo efeito estético e erótico da forma mercadoria sobre o novo sujeito, também se evocava, sinteticamente, como uma espécie de associação livre da massa, a imagem da guerrilha que pairava como um possível horizonte.

Considere-se o próprio movimento da imitação, que é mais complicado do que parece. No prefácio de Sonhos D’Ouro, escreve Alencar: “Tachar estes livros de compleição estrangeira é, relevem os críticos, não conhecer a sociedade fluminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia universal, que é a língua do progresso, jargão eriçado de termos franceses, ingleses, italianos, e agora também alemães / Como se há de tirar a fotografia desta sociedade, sem lhe copiar as feições?”. O primeiro passo portanto é dado pela vida social, e não pela literatura, que vai imitar uma imitação. Mas fatalmente o progresso e os atavios parisienses inscreviam-se aqui noutra pauta; retomando o nosso termo do início, são ideologia de segundo grau.

Em meio aos argumentos já célebres desta passagem de 1977, Roberto Schwarz acrescenta a seguinte nota de rodapé:

A situação é comparável a de Caetano Veloso cantando em inglês. Acusado pelos “nacionalistas”, responde que não foi ele quem trouxe os americanos ao Brasil. Sempre quis cantar nesta língua, que ouvia no rádio desde pequeno. E é claro que cantando inglês com pronuncia nortista registra um momento substancial de nossa história e imaginação.

Assim a problematização da música é mais rica do que a sua aparência dá a ver, enquanto em Verdade tropical, o livro dos anos 1990, o crítico vê ao contrário, e então a aparência rica, que faz parte da forma, não escapa a um problema que, de fato, existe ali. Entre a integridade da solução estética e intelectual de Caetano para a canção em inglês e a tendência de Alencar de ser subsumido, reduzido, ao problema da cultura de importação que ele percebe, emergiram as duas grandes soluções teóricas e estéticas para a cultura de segundo grau do país periférico e atrasado. A antropofagia de Oswald de Andrade, que está no fundo e sustenta o gesto de Caetano Veloso, e a analítica inventiva do próprio mal, de Machado de Assis, que anima a posição crítica tensa de Roberto Schwarz. A cultura crítica brasileira oscila entre estas duas potencias, nem sempre reconciliáveis.

As canções em inglês de Caetano Veloso – Lost in paradise, A little more blue, London London, You don’t know me,…são algumas das mais perfeitas do cancioneiro popular brasileiro. E Baby é a mais linda canção dialética de amor que já foi feita.

O segredo do mundo pop no Brasil está na década de 1970. Ele deve ser localizado na modernização acelerada da vida dada pela televisão e na captura feliz da contracultura no grande novo mercado da indústria cultural, universal local. O nome que este movimento conheceu foi “desbunde”: trazer para o corpo erótico a falta de solução e continuidade histórica da crise brasileira, revertendo o transe em transa. Caetano Veloso foi o seu maior artista. Caetano Veloso, classe média brasileira, rede Globo de televisão, é uma equação difícil, mas verdadeira.

Há uma clara derivação kitsch da MPB pós-tropicalia. Não um kitsch operando de fora, por alguma consciência ainda preservada que manipula e cria algo com as unidades e formas industriais e de mercado, mas o kitsch efetivo, inconsciente de sua indiscriminação de uma cultura de massa feliz e regredida, mesmo quando afeta tristeza. As muitas canções pop kitsch que se sucedem de 1969 a 1975, fascinadas com a ampliação controlada do mercado de consumo do país. São os “mustangues cor de sangue” de Simonal e Marcos Valle, o “cristo de aço da BR 3” de Toni Tornado, os rocks que querem refletir sobre o rock, mas não escapam ao pastiche, de Sá, Rodrix e Guarabira, o “Jesus Cristo eu estou aqui” de Roberto Carlos, o “escuro do meu quarto, à meia noite à meia luz” de Guilherme Arantes, “a nuvem passageira” de Hermes Aquino, as “paralelas” de Belchior.

Mais tarde, em um movimento de retorno desta matéria degradada do espírito confundido com a excitação superficial da vida de mercado, surge um kitsch industrial “de qualidade”, de segundo grau, que, ganhando alguma autoironia, se reaproxima, mais ou menos, do momento intelectual perdido do tropicalismo – Ney Matogrosso, Ivan Lins, um certo Raul Seixas, Eduardo Dusek, um pouco da Rita Lee, Baby Consuelo, etc… Deste modo, o primeiro rock nacional dos anos 1980 aproveita a revalorização do kitsch industrial da new wave internacional, para realizar, sem culpa, este nosso outro kitsch, autoindulgente. Uma imensa corrente kitsch deu testemunho da modernização de uma consciência de classe média atrasada para o próprio mundo que a dominaria a partir de então.

Outro movimento importante da música dos primeiros anos 1970: do rock injetado na MPB, dos Mutantes e de Rita Lee, ao samba elevado ao rock dos Novos Baianos – inspirados pelos velhos Gil e Caetano…

Os grandes comentaristas do kitsch, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, João Bosco, não são em nada kitsch.

Só podemos reconhecer José de Alencar como Brás Cubas após o trabalho de Roberto Schwarz. Este é o sentido de um acontecimento do pensamento sobre a história, ele permite trabalhos e transformações futuras, mas ele também altera em profundidade o sentido do próprio passado. Caetano Veloso tem uma passagem ensaística perfeita a respeito deste tipo de reversão do sentido da história, a partir de uma certa realização que a condensa, completa e ilumina, na qual comenta como o advento da bossa nova de João Gilberto alterou o sentido do que era o samba, e seu passado, entre nós, fazendo emergir a ideia da linha evolutiva da MPB. Roberto Schwarz comenta mesmo esta passagem à luz do conceito de revolução. Assim, esperamos a qualquer momento a ordem de sentido que deve, ao mesmo tempo que permitir o futuro, iluminar, alterar e completar o passado, retirando-nos da aborrecida compulsão a repetição mais comum, que é o nosso presente.

Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


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