Notícias de outras ilhas: Bruna Kalil Othero

Notícias de outras ilhas: Bruna Kalil Othero
A escritora Bruna Kalil Othero (Foto: Maria Thereza Pinel)

 

Bruna Kalil Othero (Belo Horizonte, 1995) é escritora e pesquisadora. Autora dos livros de poesia Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas (2019, premiado pelo Ministério da Cultura), Anticorpo (2017), Poétiquase (2015) e do livro-objeto de ficção Carne (2019), também organizou duas coletâneas de ensaios literários. Seu livro inédito Tinha um Pedro no meio do caminho foi premiado pela Secretaria Especial de Cultura em 2019.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Hilda Hilst e Carlos Drummond de AndradeA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da escritora abaixo.

 

Nesse isolamento em que a sanidade mental do brasileiro é posta à prova, tenho escolhido voltar aos meus clássicos, esses que, falando com Italo Calvino, moram no nosso coração e são uma espécie de “ilha” segura, um refúgio. Toda a série “Poemas aos homens do nosso tempo”, de Hilst, é impressionante, e esse poema em particular me emociona imensamente, pois nos lembra da importância do artista nos momentos de crise. Já o “Hino Nacional”, de Drummond, é uma provocação perfeita para os nossos dias, nos quais a identidade brasileira tem sido deturpada e violentada. Lê-lo em 2020 é tão potente que resolvi gravar uma performance com ele. Que a palavra e a poesia nos ajudem a persistir nesse oceano de tormentas. Sigamos!

 

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Poemas aos homens do nosso tempo (VI)

Hilda Hilst

Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
Livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.

(Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974)

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Hino nacional

Carlos Drummond de Andrade

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás as florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas…

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos.
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

(Brejo das Almas, 1934)


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