Bolsonaro encurralado
Eu resumiria em quatro adjetivos o estado de Bolsonaro: investigado, contestado, rejeitado e perdido (Foto: Reprodução)
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Bolsonaro está nas cordas e à beira de alguma loucura política, ao que parece. Em entrevista à rádio Jovem Pan na quarta-feira (4), afirmou que a sua inclusão como investigado no inquérito sobre fake news é uma exorbitância. Como o ato estaria, segundo ele, fora “das quatro linhas da Constituição”, considera-se autorizado a recorrer a soluções inconstitucionais. Disse-o com todas as letras: “Então o antídoto para isso também não está dentro das quatro linhas. Aqui ninguém é mais macho que ninguém”.
Sim, “macho”, pois afinal, para o presidente da República, não se trata de governar um país nos limites do marco constitucional e considerando legítimas todas as outras forças políticas, inclusive quando contradizem a sua vontade, mas de um campeonato para determinar quem é o mais macho do rebanho.
Mas por que ele chegou tal exasperação?
Eu resumiria em quatro razões, quatro adjetivos que resumem bem o estado de Bolsonaro: investigado, contestado, rejeitado e perdido.
Bolsonaro investigado
Nesta quarta-feira (4), o ministro Alexandre de Moraes determinou que o presidente fosse investigado no inquérito sobre produção e disseminação de fake news. O pedido havia sido feito por unanimidade na segunda-feira (2) pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral. Bolsonaro agora é investigado por atacar sistematicamente a credibilidade das urnas eletrônicas e a honestidade do sistema eleitoral. O ataque culminou em uma live na quinta-feira passada (29 de julho), explicitamente convocada para a apresentação de provas de que as eleições brasileiras têm sido fraudadas, e que redundou apenas em mais um conjunto de mentiras, alegações infundadas e depoimentos já desmentidos ou sem confiabilidade alguma. Teve de tudo naquela noite, menos provas, que o presidente, por fim, confessou não ter.
Cansado de ficar na defensiva, o TSE resolveu, enfim, agir. A acusação é de que o presidente tenha praticado nada menos do que 11 crimes nessa tentativa desesperada de desqualificar uma eleição futura que ele teme perder.
Some-se a isso a abertura de uma investigação administrativa contra o presidente determinada pelo corregedor-geral da Justiça Eleitoral, um processo que não depende de ação do Procurador Geral da República nem dos presidentes das duas Casas Legislativas Federais, que estão fechados com Bolsonaro para garantir-lhe imunidade. Neste caso, a condenação pode levar à inelegibilidade, coisa que o presidente, consumido pelo desejo de reeleição, não consegue sequer admitir.
Com isso, a partir desta semana o presidente é objeto não de um, mas de três inquéritos já abertos no STF. Pois além das fake news contra as urnas, investiga-se Bolsonaro por interferência ilegal na Polícia Federal, presumivelmente para proteger os filhos, e por prevaricação no escândalo relacionado à compra da vacina indiana. Além, naturalmente, da investigação administrativa a cargo do TSE.
Bolsonaro contestado
Nesta segunda-feira (2), o ministro Barroso, presidente do TSE, fez o mais duro discurso de um magistrado das cortes superiores do país sobre um presidente da República. “As democracias contemporâneas são feitas de votos, são feitas do respeito aos direitos fundamentais e são feitas de debate público de qualidade. A ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática. (…) Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática”, afirmou o magistrado. “Nós já superamos os ciclos do atraso institucional, mas há retardatários que gostariam de voltar ao passado. Parte dessas estratégias inclui o ataque às instituições.”
Literalmente, o ministro disse que Bolsonaro suja, emporcalha, polui o debate público com “desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias” com propósitos políticos bem precisos. E que gostaria de dar um golpe, sim, e que este é o propósito desses ataques às instituições. Está certo.
Anteriormente à fala de Barroso, havia entrado em campo o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, incentivando a moderação institucional das bravatas do presidente da República e buscando um concertamento entre os Três Poderes, o que não surtiu qualquer efeito. Fux se dirigiu a Bolsonaro como se falasse 1) com um adulto racional; 2) com um chefe de Governo com a mínima noção do seu papel republicano; 3) com um interlocutor intelectualmente honesto e de boa-fé. Mas a pessoa que temos na presidência da República está muito longe desse cidadão imaginado pelo presidente do STF.
Isso me lembrou a anedota, que os olavistas ajudaram a divulgar, da inutilidade de se jogar xadrez com pombos. Como eles adoram dizer, qual a vantagem de jogar xadrez com um pombo se você já sabe que ele vai defecar no tabuleiro, derrubar as peças e ainda sair voando cantando vitória?
Os Bolsonaros e bolsonarismo, de fato, não têm o menor temor ou respeito pelo STF, como se tem demonstrado seguidamente nas manifestações da massa de seguidores, de ministros civis ou militares, dos filhos do presidente e, por fim, do próprio mandatário mor da Nação. Gritam pela deposição e prisão dos juízes da Corte, como torcedores pedem a troca de um técnico de futebol após uma derrota do time. Xingam membros do STF de ladrões, corruptos e imprestáveis como se fosse a coisa mais banal do mundo. E diante de qualquer contrariedade, qualquer bolsonarista com muitas comendas ou o próprio presidente avisa, a quem quiser ouvir, que vai meter o braço e mostrar, afinal, quem é macho aqui. A verdade é que, de toda a Suprema Corte, os Bolsonaros e o bolsonarismo só temem mesmo o ministro Alexandre de Moraes, que não costuma joga xadrez com pombos.
Mas agora Barroso subiu o tom e fez um veemente discurso republicano, com tudo que precisava ser dito. E enquanto eu concluía essa coluna, Luiz Fux se cansou de pombos enxadristas e fez um pronunciamento em que cancela a reunião que tinha agendado com os chefes dos Três Poderes da República, basicamente reconhecendo que com Bolsonaro não tem diálogo possível, uma vez que para haver diálogo é preciso respeitar os outros interlocutores e se dispor a levar em consideração o que eles dizem, o que não se aplica ao caso. Bolsonaro continua imune a rogos e admoestações para que se atenha a modos institucionais e falas republicanas, desrespeitando sistematicamente a Corte Suprema do país, ofendendo de forma particular os ministros Barroso e Moraes.
O presidente do STF apresenta, então, três razões para não querer mais conversa com o presidente da República. A primeira, são os ataques contínuos aos ministros do Supremo, que, segundo ele, deve ser considerado um ataque a toda Corte. Além disso, continua, Bolsonaro “mantém a divulgação de interpretações equivocadas de decisões do plenário, bem como insiste em colocar sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro”.
Em palavras simples, o presidente da República não apenas continua mentindo ao dizer que não pôde tomar as medidas necessárias durante a pandemia porque o Supremo atou-lhe as mãos, como continua espelhando mentiras para negar a lisura do processo eleitoral sob guarda e vigilância do TSE. Acabou a conversa. Demorou, para isso acontecer.
Bolsonaro rejeitado
Como se não bastasse, não tem pesquisa de intenções de voto publicada ultimamente que não mostre que Lula vem deixando Bolsonaro para trás, e cada vez mais longe. Para um presidente obcecado pela reeleição, perder para o PT é perder tudo. Isso lhe deve provocar espasmos em cada músculo. Afinal, foi escolhido na eleição passada para ser a encarnação do antipetismo e para aniquilá-lo eleitoralmente. A simples ideia de o PT ter não apenas sobrevivido ao bolsonarismo, mas ser a opção eleitoral que pode removê-lo do cargo, é-lhe inconcebível. Os dados, entretanto, teimam em dizer que o cenário parece provável. Para um sujeito já não muito sólido mentalmente, isso deve ser devastador.
E o pesadelo se completa com o acelerado crescimento da rejeição a ele, por outro lado. A pesquisa PoderData realizada nesta semana (2-4 de agosto) mostra não apenas uma segunda queda consecutiva na intenção de voto em Bolsonaro, mas, o que é pior, registrou que 61% dos eleitores afirmam que não votariam nele de jeito algum. Esse número é de 34% para Lula e 48% para Doria, que são os que Bolsonaro odeia mais. Bolsonaro, como todo populista, gosta da ideia de ser querido pela massa, de ser o líder carismático de multidões. 61% de rejeição absoluta é uma ferida narcísica que não tem tamanho.
Bolsonaro perdido
No panorama mais alargado há mais uma causa que não deve ser desconsiderada. O que está em jogo é que Bolsonaro e o bolsonarismo estão acostumados a ganhar as grandes guerras de comunicação política, as grandes batalhas da propaganda, ou a se beneficiar delas.
Na verdade, montaram a sua vitória eleitoral sobre duas vitórias no campo da comunicação.
A primeira grande guerra vencida foi conseguir convencer a maior parte dos eleitores brasileiros que o PT era um partido de ladrões e corruptos que haviam destruído o país, e que Lula era o ladrão e o corrupto mor. Essa convicção foi incorporada e naturalizada por uma boa parte da população e virou dogma para a militância antipetista que daí emergiu. Até hoje, é crença básica e indiscutível para uma boa parcela da população, quer isso se sustente em fatos ou evidências ou não, mesmo depois da ruína da Lava Jato e da decadência do bolsonarismo.
A segunda grande guerra de comunicação vencida foi produzir e disseminar a convicção de que o PT e os partidos de esquerda eram essencialmente imorais no seu projeto de país e nas suas políticas públicas. Se os crentes nessa tese não tinham o mesmo volume dos que compraram a tese “PT = corrupção”, tinham número suficiente para construir a base mais fiel de Bolsonaro.
O bolsonarismo é em grande parte um campo de refugiados dos que se apavoraram com o pânico moral insuflado pelos conservadores, e que teve sucesso em convencer boa parte dos brasileiros da tese de que a esquerda equivalia à imoralidade, à indecência, à decadência dos valores cristãos.
A vitória nessas duas guerras de comunicação mudou a cara da política brasileira, o seu vocabulário, os seus temas, a lista de prioridades políticas dos eleitores e, sobretudo, os resultados eleitorais.
Acontece que o bolsonarismo está na iminência de perder as duas guerras em que se meteu posteriormente, desde 2020, e não está acostumado com isso. A Guerra pelo Voto Impresso está prometendo ser a segunda derrota importante do bolsonarismo, depois da sucessão de batalhas perdidas (as da Cloroquina, da Imunidade de Rebanho e da Antivacina) na Guerra Pandêmica. Pelo jeito, o bolsonarismo pode perder as duas guerras de comunicação ao mesmo tempo.
Há quem alegue que Bolsonaro continua pautando os meios de comunicação e a mídia social, com temas diversionistas e com agendas improdutivas como voto impresso, depois transformado em “auditável”, e “tratamento precoce”. Quem faz essa objeção não sabe a diferença entre estabelecer a pauta da conversa pública (agenda-setting) e impor a interpretação predominante dessa pauta (framing). Nessas duas histórias, Bolsonaro perdeu o enquadramento, pois se falou dos temas, mas a maioria das pessoas aderiu a uma interpretação divergente da dele. O presidente continua forte em dizer sobre o que falar, mas não consegue mais dizer o que a maioria deve pensar sobre esses temas. Controla o agendamento, mas perde no framing dominante, que resulta ser o oposto do que ele queria.
Como resultado dessa derrota, Bolsonaro ficará sem poder político, posto que já que arrendou ao Progressistas o Poder Executivo, que tinha, e a influência legislativa, que poderia ter, em troca de proteção contra o impeachment. Mas, sobretudo, como o José do poema de Drummond, Bolsonaro está sem discurso. E agora?
Sem discurso ou, como diz Carluxo, sem narrativa, o bolsonarismo surta, pois é feito de imagens, mentalidades, histórias e sentimentos. Para eles, não existem fatos, só a interpretação bolsonarista dos fatos. E mais nada. Quando as pessoas deixam de crer, veem o vazio de que são feitos os que nos governam. Bolsonaro fica nu. E agora?
PS. E se vocês me acharam otimista, já os corrijo. Só não está com medo quem não está acompanhando a política. Os Bolsonaros estão encurralados e sangram, mas, na savana política, não é justamente nesta situação que os bichos ficam mais perigosos?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)