Bolsonaro e a transparência como trunfo
Bolsonaro durante ato de entrega de viaturas e armamentos à Polícia Rodoviária Federal (Foto: Carolina Antunes/PR)
Jair Bolsonaro nunca foi perito em honestidade. O que lhe pôs no pódio das candidaturas presidenciais não foi qualquer compromisso com a moralidade. Pouco importou ao seu eleitorado recém autodescoberto em 2018 e crescentemente orgulhoso de si desde então – como aliás pouco importa, hoje, aos seus apoiadores mais empedernidos –, se ele demonstra severidade na conduta republicana ou se é eticamente elástico. O que elevou o personagem, do abisso da improbabilidade à maré do sucesso, e o que conserva a sua aprovação, foi e é o monopólio da transparência, a performance do político profissional que, atuando por impulso, aparenta não dar margem a intenções ocultas.
É preciso esclarecer do que se trata. A transparência referida à conduta ordinária de um político profissional, que exibe graus variados da própria crueza, difere da transparência enquanto virtude de quem respeita os protocolos necessários à austeridade das coisas de Estado. A distinção pode ficar mais simples se tomarmos uma como trunfo político e a outra como virtude republicana. O que Bolsonaro ostentou e ostenta é a primeira, não a segunda. Uma desmesurada espontaneidade caracteriza a sua atuação e o move sem aqueles impedimentos morais e institucionais que obrigam qualquer pessoa pública a praticar frenagens.
Partindo sem filtros, sem maquiagens, sem marketings, sem inibições, ele segue sem planejamentos, sem prestação de contas, sem controles, sem responsabilidades. Polêmicas que submeteriam um FHC ao embaraço e um Lula ao jogo de cintura, estimulam Bolsonaro ao exercício do escárnio; como quem nada tem a perder ou a esconder, ele descobre que muito ganha ao desdenhar. A espontaneidade identificada em seus gestos pela massa de eleitores que firmou com ele um pacto de cumplicidade e confiança é a mais exitosa tradução da conduta inspirada na transparência enquanto trunfo. Claro que traduzida assim ela mais cheira a vício de conduta do que a disposição elogiável do caráter. Mas estamos diante de uma rara adaptação
de sua carapuça nessa circunstância histórica de desmoralização da política em que Bolsonaro brilha como protagonista.
Voltemos algumas décadas para agregar eloquência ao ponto. De Jânio Quadros em diante, tornou-se comum os presidenciáveis adotarem a fantasia da transparência com o objetivo claro, mas inconfessado, de posar ao lado do povo como quem está entre os seus. O pretexto era mirar a contenda entre as massas e os quadros dirigentes do dinheiro, da cultura e do poder, e acertar na querela do sufrágio, elogiando a naturalidade iletrada do grande público e criticando o refinamento vazio das elites. A transparência era uma mímica dos aspectos do comportamento popular que os candidatos sentiam poder gesticular convincentemente. Um figurino factível, conquanto caricato, porque, sendo os candidatos em sua maioria membros das elites que criticavam ou recém-adotados por elas, soava simpática a singela rebeldia que ensaiavam contra as suas origens. Mas ela não deixava de ser contraditória e solúvel, porque a simulação da transparência assim instituída mal podia disfarçar a opacidade a que servia.
O primeiro candidato com real adesão popular que não precisou se apresentar como homem do povo, Lula, foi submetido a uma dieta rica em refinamento e em sofisticação, após três tentativas à presidência fracassadas. Só que a transparência até aqui ainda era dosada, calculada, medida, customizada. Os políticos a tinham como uma porta entreaberta à sua vida privada. Resumia-se à exibição de hábitos de cotidiano, confissão de fé religiosa, deslizes com xingamentos, furos em protocolos, preferências por times de futebol e inclinações etílicas. Era uma concessão ao povo, mas uma concessão seletiva.
Bolsonaro foi quem revolucionou o
recurso político da transparência,
escancarando a porta de seus
pensamentos e preconceitos.
Exibindo as mais esdrúxulas opiniões e naturalizando as atitudes mais imorais e descabidas, conquistou capital político para o trono presidencial, prosperando contra os ataques escandalizados e inúteis da imprensa e de detratores. Como isso foi possível?
É presumível que o marketismo, que engrinaldou e conferiu novo carisma a Lula em 2002, tenha perdido credibilidade nos anos petistas, a ponto de despertar uma sensibilidade popular contra maquiagens políticas e outra a favor de personagens crus. A combinação dessas duas sensibilidades foi o condimento mais importante para a receita de 2018. A vitória eleitoral naquele ano não foi a dos outsiders do Judiciário, do empresariado e das polícias, preparados a molho; foi a do sashimi do bolsonarismo, que os incluiu na barca em que era a iguaria principal. O mérito pelo uso político da crueza transparente é inteiramente de Bolsonaro e de sua estirpe inculta e eficaz. Consiste no feito de desenhar no imaginário popular uma inferência bastante direta que vincula a transparência à espontaneidade, a espontaneidade à crueza, a crueza à simplicidade, a simplicidade à verdade, a verdade à decência. Esse silogismo hipotético renova a sua validade formal em distintos episódios dos dois conturbados anos recentes.
Para exemplificar, lembremos o repercutido caso em que o ex-capitão e pré-candidato justificou o uso impróprio do auxílio-moradia dizendo aproveitá-lo para “comer gente”, episódio particularmente emblemático para tornar compreensível a diferença entre a transparência como trunfo político e a transparência como virtude republicana. Transcrito um trecho da resposta, temos: “como eu estava solteiro naquela época, esse dinheiro do auxílio-moradia eu usava para comer gente”.
A franqueza aqui tripudia sobre a probidade e ainda toma troco. Ao confessar o uso inadequado do recurso público e a recreação a que ele era destinado, Bolsonaro também embutiu na resposta o componente mais importante para fins da transparência como trunfo, a saber, sublinhar que era solteiro no período em que se divertia com o imposto alheio. Como explicar que o público cristão não tenha reagido a esse depoimento impondo a punição nas urnas? Parece que o público cristão – principalmente evangélico, mas não só – cultiva uma moral conservadora que é agudamente prescrita à família monogâmica temente a Deus, aos seus rituais e aos seus símbolos. Mas, confessar um malfeito exógeno à vida matrimonial, como o fez o candidato, é tanto admitir um pecado quanto admiti-lo em um contexto em que se pode perdoá-lo facilmente.
O conservadorismo cristão é exigido preferencialmente a partir da lua de mel, sendo ao pré-nupcial (ao homem, faça-se a ressalva!) consentido o estado civil de poligamia permanente, desde que aceite Jesus depois de terminadas as aventuras. A confissão desse episódio foi duplamente feliz, primeiro, por não ter negado o uso antirrepublicano do recurso, segundo, por ter admitido o que fazia enquanto não havia conhecido aquela que hoje é a primeira dama.
Beneficiado por gerar prova contra
si mesmo, Bolsonaro, literalmente,
só fez gozar.
O leitor certamente lembrará de inúmeros outros capítulos da novela bolsonarista que confirmam o trunfo da transparência sobre o republicanismo. Cabe a mim apenas retomar a pista conceitual que motivou esse texto à guisa de conclusão. A transparência tornou-se esse instrumento poderoso por ser, com Bolsonaro, radicalizada. A partir de então, os artificialismos da marquetagem foram aposentados, passando a crueza a ser mais importante do que qualquer outro recurso de exposição, inclusive a demonstração de respeito à coisa pública.
Bolsonaro interpreta e surfa nessa onda justamente porque, na política, sempre há matéria onde se anuncia uma vacância. E não dá pra saber se esse recurso será generalizado ou se a carapuça só serve ao Jair. Mas é fato que o que assemelha aquele improbo usuário do auxílio-moradia ao atual chefe do executivo permanece sendo essa exposição de crueza que, vez ou outra, se confunde com rudeza, grosseria, ignorância e boçalidade, mas também com originalidade, espontaneidade, simplicidade… projetando-se em parte expressiva do imaginário popular massacrado pela propaganda antipolítica sob o slogan tácito de que nada de pior pode vir de alguém que performa como se nada tivesse a esconder – isso é válido até quando esse alguém, de fato, tem o que esconder.
Tiago Medeiros Araujo é doutor em Filosofia pela UFBA, professor do Instituto Federal da Bahia e membro do Laboratório de Estudos Brasil Profundo (IFBA) e do GT Poética Pragmática (UFBA).