Bolsonarismo de frente para a Justiça
Deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ)
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O deputado Daniel Silveira foi condenado nesta quarta (20), em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a 8 anos e 9 meses de prisão.
Primeiramente, há que se destacar o enorme valor simbólico do ato para quem tem a mínima sensibilidade para direitos humanos. Política é feita de símbolos, como se sabe, e o ex-policial militar ganhou um lugar na atenção e nos afetos dos bolsonaristas quando protagonizou em 2018, juntamente com o atual deputado estadual do Rio de Janeiro, Rodrigo Amorim, o ato simbólico de quebra acintosa de uma placa de rua em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada há poucos meses deste evento.
De algum modo, Silveira e Amorim, passaram a simbolizar um dos tipos mais comuns de bolsonarista: acintoso, marombado e ultrajante.
Não deixa de ser também simbólica, a condenação de Silveira significou que o bolsonarismo de desrespeito a tudo e a todos, de rufiões apoiados na certeza da invulnerabilidade, pode ser alcançado e punido pela Justiça. Coisa de que muitos brasileiros justificadamente duvidavam.
Os que ainda acreditam na democracia liberal também festejaram a condenação, uma vez que as razões para isso têm a ver basicamente com um conjunto de ataques proferidos contra alguns pilares do Estado democrático. Este deputado em particular acompanhou o presidente nas suas investidas constantes, contra o STF, principalmente desde 2020. Silveira e outros se notabilizaram pela agressividade com que se referiam à Corte Suprema em geral ou a juízes do STF em particular. Das críticas passaram aos insultos vulgares e violentos, dos insultos às ameaças explícitas aos juízes e aos seus familiares, das ameaças passaram ao incitamento a invasões do Tribunal, a que os juízes fossem afrontados em público e desobedecidas as suas decisões. Faltou apenas o derramamento de sangue.
No Brasil, hoje, particularmente na direita política, o ódio ao Supremo e aos seus juízes é quase tão grande quanto o ódio ao PT, se não for maior. Muitos consideram esse ódio justificado. O que muita gente parece não entender, contudo, talvez pela nossa baixíssima compreensão do que é a democracia e de como ela deve funcionar, é que o STF não é apenas mais um dos tribunais brasileiros, não é apenas uma coleção de juízes pomposos tomando decisões de que frequentemente não gostamos e contra as quais nada pode ser feito: o STF é a cúpula do Poder Judiciário, parte essencial do tripé que sustenta um Estado democrático, tão imprescindível e legítimo quanto a Presidência da República ou o Poder Legislativo.
De modo que a divisão da República em três Poderes distintos não é para criar uma complicação desnecessária para o funcionamento do Estado como muitos incautamente pensam, mas para salvaguardar a democracia, isto é, impedir que o Poder Executivo concentre todo o poder político numa República ao ponto de criar um novo Poder Absoluto. A divisão dos Poderes é essencial para evitar que democracias regridam ao estado de autocracias, com Monarcas, em vez de governantes eleitos controlados pela Constituição e por instituições que os supervisionem, e exercendo mandatos populares com prazo de validade determinado. No caso do Poder Judiciário, além disso, é a forma de garantir que as Repúblicas não regridam da condição de um governo regido por Leis (o Estado de Direito) para um governo regido pelo arbítrio do governante (a autocracia).
O que Silveira fez não foi apenas insultar uma instituição e umas pessoas físicas, não foi apenas expressar uma opinião no gozo das suas prerrogativas como dono de um mandato popular, foi atacar, negar o direito de existir e incitar outros a atacarem um dos fundamentos da República, o Poder Judiciário. Que é a nossa última salvaguarda se quisermos viver sob um Estado de Direito e não um Estado sob o arbítrio de Bolsonaro e do bolsonarismo. Um limite, ainda que de certo modo simbólico, precisava ser posto. E foi posto, nesta quarta-feira, firmando claramente a mensagem de que, não, o bolsonarismo não pode tudo, e que sim, a democracia liberal ainda tem dentes e morde.
Entretanto, vejam só, eu tinha apenas terminado de gravar essa crônica, quando Jair Bolsonaro resolveu conceder o indulto presidencial ao seu companheiro de jornada nos ataques sistemáticos ao Poder Judiciário. Afinal de contas, do ponto de vista do desprezo às instituições que garantem a democracia e o Estado de Direito, Bolsonaro e Silveira são a mesma coisa. E, obviamente, o bolsonarismo que compartilha a premissa de que o Judiciário é o principal obstáculo à realização do seu modelo de Estado, desejava muito que o presidente dobrasse a aposta e confrontasse o STF até o limite para ver no que resulta. Como em Star Wars, o Império contra-atacou.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes
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