Boletos, prestígio e a exploração do trabalho artístico no sistema neoliberal
Registro fotográfico da ação "Trabalhadores da arte", 2019, de Daniel Jablonski (Foto: Divulgação)
Quem hoje se manifesta a respeito da arte e da história da arte
vê toda tese que gostaria de apresentar
a um leitor talvez ainda existente invalidado
de antemão por muitas outras teses.
Não é mais possível assumir absolutamente
nenhum ponto de vista que já não
tenha sido defendido de uma forma ou de outra.
O melhor é perseverar no próprio ponto de vista
pelo qual se decidiu e já contar com o fato de que os outros
ou o consideram falso ou, caso concordem,
tenham-no compreendido de maneira equivocada.
Hans Belting
Logo no início de Estética (1750), de Alexander Gottlieb Baumgarten, lemos a seguinte passagem:
Para que seja cumprido […] [meu] dever, escolhi um assunto que, na verdade, é considerado pouco profundo e alheio ao discernimento dos filósofos, mas que me pareceu suficientemente importante, face à fraqueza das minhas forças, e que, no que se refere à dignidade do assunto, me pareceu suficientemente adequado para exercitar os espíritos que se dedicam a procurar as razões de todas as coisas.
Com esse tom algo tímido, inaugura-se, no século 18, a esfera da Estética no âmbito filosófico. A essas linhas seguem-se outras, cujo ritmo, em certa medida, também ganha um quê de modesto. “Pouco profundo”, “alheio ao discernimento dos filósofos”, “importante […] face à fraqueza de minhas forças” são formulações que indicam o local a partir do qual se observará as teses ali desenvolvidas. A humildade, impressa no gesto de circunscrever um sistema de reflexões sobre as artes, o belo e o sensível no pensamento moderno iluminista, condiz bem com o lugar ideológico que a produção e as obras artísticas iriam assumir em toda a era burguesa – o de ser algo inútil, supérfluo e, em última instância, dispensável. Reservar um campo de reflexões sobre o sensível e as artes aparece como sendo algo quase pueril. Embora tenha uma profunda consciência da relevância da esfera sensível e dê a ela destaque, Baumgarten, ao colocar-se de maneira subserviente, pedindo licença e desculpas aos “verdadeiros” filósofos por dedicar-se à Estética, ainda a posiciona em um patamar apartado e inferior ao da razão. De outro lado, esse local destinado às artes, supostamente pairando “fora” dos mecanismos reais e rotineiros do mundo político e social, preserva uma aura que o torna imaculado e resplandecente.
Na obra de Baumgarten, a inferioridade da sensibilidade e da imaginação aparece também em postulados como: “as representações, obtidas através da parte inferior da faculdade cognitiva, são sensitivas”. Situada abaixo da faculdade cognitiva, a sensibilidade segue, na modernidade, a tradição alinhada à antiguidade platônica. O fato de Baumgarten render-se ao estilo formal do sistema, típico da escrita filosófica moderna, já seria um visível sinal de que ele amputa, na própria construção textual, o que é inerente à sensibilidade, adequando à armadura da racionalidade o que dela escapa.
Há trechos da obra do filósofo que mostram, porém, um outro sentido. Embora submeta a esfera sensível, e seus desdobramentos como um todo, aos ditames do sistema, Baumgarten introduz, nas entrelinhas de sua obra, críticas à estreiteza da razão sisuda e cega ao universo estético. Nele estão reunidos memória, admiração, afetos, invenções heterocósmicas entre outros elementos indispensáveis ao pensamento que inclui o corpo em seu cerne.
Ora, se todos esses aspectos foram relegados a uma esfera que, em determinada tradição ocidental iluminista, parece ser considerada como menos relevante que outras espécies de conhecimento e de práxis, como as ciências ou a economia, é tempo de questionar a tradição como um todo, e não depreciar a importância das artes ou da produção artística. Isso tem sido insistentemente feito por muitos artistas, críticos e teóricos da arte, mas a persistência de seu espaço incerto – precarizado para a grande maioria dos trabalhadores das artes e exaltado pelas instituições, leilões e feiras que colocam as obras em lugar de mercadorias-fetiche hors concours – revela que ainda não fomos capazes de verdadeiramente mudar o estatuto das artes e de seus produtores no interior do sistema capitalista. Ora tidas como mercadorias supérfluas e luxuosas, ora como objetos apartados dos sistemas políticos e sociais, as obras e as produções artísticas seguem uma história de ter que lutar constantemente pelo seu direito legítimo e digno de cidadania. Conseguem quando se colonizam à linguagem da mercadoria. Cada artista luta por sobreviver de seu trabalho, tendo como moeda de troca prestígio com exposições sob aval de renomadas instituições.
Ademais, desde a anunciação hegeliana do fim da arte, reafirmar sua relevância tornou-se procedimento contínuo e inescapável. Em O fim da história da arte, Hans Belting declara que “o fim da história da arte” é um problema importante:
[…] se levarmos a sério a ideia originária que está presente no conceito de uma “história da arte”: a ideia, a saber, de restituir uma história efetiva e trazer à luz o seu sentido. No conceito está presente tanto o significado de uma imagem como a compreensão de um enquadramento: o acontecimento artístico, como imagem, no enquadramento apresentado pela história escrita da arte. A arte se ajustou ao enquadramento da história da arte tanto quanto esta se adequou a ela. Hoje poderíamos, portanto, em vez do fim, falar de uma perda de enquadramento, que tem como consequência a dissolução da imagem, visto que ela não é mais delimitada pelo seu enquadramento. O discurso do “fim” não significa que “tudo acabou”, mas exorta a uma mudança no discurso, já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos.
Suor laboral mal remunerado
Como artista, estou imerso no mundo da arte.
Quando olho ao meu redor, há muitas coisas que me intrigam.
Conheço artistas que ganham muito dinheiro e tenho um ou dois colegas
que se saem relativamente bem.
Outros colegas conseguem sobreviver, como eu,
porque vendem regularmente o seu trabalho,
recebem bolsas e subsídios ou têm um segundo emprego interessante.
A maioria dos meus colegas [artistas], porém, é pobre.
Hans Abbing
Como Santiago Sierra, Lourival Cuquinha, Andrea Fraser, Carmela Gross e outros artistas visuais contemporâneos, Daniel Jablonski traz à baila questões relacionadas aos trabalhadores das artes. No 1º de maio de 2019, quando se comemora o Dia do Trabalho, um grupo saiu pelo bairro da Barra Funda, São Paulo, segurando uma faixa onde se lia: o boleto sempre vence. Nessa manifestação “diminuta, esvaziada e silenciosa” colocava-se em questão uma falta de propósito de jornadas laborais contemporâneas. Pessoas que trabalham para pagar contas e sobreviver, repetindo o ritmo a cada mês. A faixa não retrata a condição apenas dos visíveis subempregos. Também abarca o meio das artes visuais na desvinculação entre a sua produção de trabalho simbólico e o seu retorno financeiro. Artistas, como bem mostra Hans Abbing, se veem obrigados a trabalhar em outro segmento para sustentar sua atividade principal enquanto artista profissional.
Trabalhadores da arte (2019-20) invoca a tensão entre o lugar da arte e a organização do mundo do trabalho no interior do sistema capitalista. “O que se entende por obra na expressão obra de arte?”, pergunta-se Daniel Jablonski. Com uma inquietação ainda mais específica, questiona: “por que, afinal, produtores de arte não conseguem pagar suas contas com arte?”
Longe de fazer uma especulação desinteressada, Daniel Jablonski coloca-se como parte do problema. Ele e colegas da área muitas vezes pagam para produzir. Embora não seja possível equiparar o trabalho artístico aos subempregos, como os de Ubers e Rappis por exemplo, a questão da manutenção da vida pela atividade central como artista está claramente colocada ao longo da era burguesa sobretudo na atualidade.
Para Daniel Jablonski, a diferença estaria demarcada pela escolha de ser artista. Em seu caso, a decisão se deveu à ideia de poder explorar mais livremente a pesquisa do que poderia ter feito nos limites da academia; queria sobretudo combinar ferramentas teóricas e metodológicas à sua experiência pessoal. Sabe que tal percurso, eleito por ele, está atravessado pelo seu lugar privilegiado de classe. Isso lhe deu acesso às instituições de excelência em que estudou e possibilitou a ele aceitar bons trabalhos, ainda que estes fossem mal remunerados. Além da classe social, Daniel Jablonski ressalta que nunca teve problemas para circular por esses espaços por razões de cor da pele ou de gênero. “Eu gosto do que faço”, conclui. Entretanto, a importância das artes não se restringe a esse veio de uma singularidade que pode ser expandida em práticas artistas e intelectuais. As artes são exploradas lucrativamente pelo mercado, e assumem papel decisivo em várias outras camadas institucionais, políticas e sociais. Daí que o trabalhador da arte ainda veja equivocadamente o seu papel. Daniel Jablonski baseia-se em Andrea Fraser para formular suas reflexões:
Para [os artistas] […] não haveria na realidade uma “demanda para a arte como tal, mas apenas para alguns indivíduos de particular gênio etc., e que, em sua ausência, todo o aparato da arte contemporânea iria simplesmente desaparecer”. Todo o contrário é verdadeiro. A prova é que, no Brasil como no mundo, o mercado de arte vem se expandindo há muitas décadas, alimentado por uma crescente demanda por obras contemporâneas. Mas não só o mercado, também as instituições, como fundações e museus. Tal demanda não é imediatamente dirigida a “indivíduos de particular gênio”, mas, pelo contrário, é disputada a unhas e dentes pelos agentes da arte, não apenas os artistas, mas também jornalistas, críticos, curadores e galeristas.
No imaginário, lembra-se Daniel Jablonski, a atividade artística aparece como excêntrica, excepcional, exclusiva, uma ilusão de que seja possível destacar-se da massa mesclada a uma expectativa latente de eternidade.
A aura inerente ao campo artístico se deve ao fato de esta constituir uma fonte privilegiada de capital social. Este termo, trabalhado nas ciências sociais, descreve uma série de recursos extremamente valiosos para a obtenção de legitimação e influência junto a uma complexa rede de relações sociais. Embora estejamos habituados a identificar e escalonar nossas classes sociais em grupos A, B, C e assim por diante, que respondem a recortes de renda, essas letras – em tese – nada nos dizem acerca desse outro valor, que existiria para além do mero alcance financeiro. O verdadeiro capital social (ou cultural), diz a teoria, não pode ser comprado. No entanto, na prática, não é raro que as classes economicamente dominantes sejam também culturalmente as mais influentes. A aparente contradição entre esses dois tipos de capital se resolve, nesse caso, não pela negação concreta do dinheiro, mas pelo gesto de escamoteá-lo simbolicamente. Simplesmente: não é chique falar de dinheiro à mesa.
Em uma recente conversa com Daniel Jablonski, o artista destacou o curioso paradoxo que envolve essa dinâmica. Só na aristocracia falar sobre dinheiro era algo feio e vergonhoso; hoje, muitos artistas, embora trabalhem como proletários, ostentam desdém análogo ao da aristocracia quando tratam da parte econômica que envolve as artes. Entre outras razões, escamoteia a precarização do ofício artístico para melhor “vender” sua imagem aurática, aparentemente descolada da zona e da lógica de mercado, o que pode lhe garantir alguma promessa de ganho futuro como resultado de inserção nos meios institucionais renomados (museus, galerias, feiras etc.). Esse aparente desdém e descompromisso ante o mundo mercadológico oculta ainda o fato de que artistas nunca estiveram tão adaptados à lógica capitalista como hoje. São empreendedores de si mesmos, que trabalham quase sempre sem remuneração, sob o aval de uma ideologia de que sua aura é o que lhes dará prestígio e trará como consequência a inserção nas instituições artísticas. Tal lógica é exatamente o que permite a exploração do trabalho artístico pelos detentores do capital.
Nesse arranjo, os “verdadeiros” artistas produzem por prazer ou necessidade de se expressar. Não que isso seja em si algo condenável. A questão é entender como essa “vocação” do artista está inserida em um repertório de interesses econômicos que fragiliza a arte no mundo e deprecia o valor laboral artístico. Retomando as questões articuladas por Andrea Fraser, Jablonski nota que a demanda de se expressar, incorporada no discurso de artistas, pode ser também enganosa. Como diz Fraser (apud Jablonski):
Estarei mesmo servindo meus próprios interesses? Segundo a lógica da autonomia artística, trabalhamos apenas para nós mesmos; para nossa própria satisfação, para a satisfação de nossos próprios critérios de julgamento, sujeitos unicamente à lógica interna de nossas práticas, às demandas de nossas consciências e desejos [drives]”. Ao que ela mesma responde: “Tem sido minha experiência que a liberdade ganha nessa forma de autonomia não é mais […] do que a base para a autoexploração”.
Não é o caso de invalidar todo o sistema das artes. Trata-se antes de reconstituir a história que se desdobra “por trás da figura do artista como um outsider e do trabalho artístico como exceção” (Jablonski). Como diz Jablonski, “a exceção artística tornou-se a regra do mercado: agora somos todos outsiders”. Em um sistema em que o trabalho artístico serve apenas à sobrevida da maior parte desta classe, resta perguntar se não é tempo de renunciar ao elã em torno do prestígio para reivindicar coletivamente melhores condições laborais.
Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).
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