Bodenloss

Bodenloss

Um dos livros mais impressionantes de Vilém Flusser é sua autobiografia filosófica chamada Bodenloss (Annablume, 2007). A obra de Flusser é incomparável consigo mesma, cada livro é uma viagem vertical à sinceridade da experiência de pensamento – também experiência existencial do autor -, linha direta ao ato de coragem filosófica que o caracteriza:  coragem de pensar a partir daquilo que se vive. Mas Bodenloss cativa porque há nele uma honestidade que revela, ainda que gentilmente, um drama. Chegamos por meio dele ao homem concreto chamado Vilém Flusser, um grande filósofo, um  escritor que, por meio de sua prática, conseguia alcançar a sinceridade. Aquela que dá autenticidade à vida de qualquer um. Aquela que é  entrega ao modo de um desnudamento da alma e que nos permite colocar a pergunta: como alguém se torna aquilo que é.

Flusser conta nesse livro escrito quando ele já não morava no Brasil (país que ele diz ter deixado para buscar “interioridade”), sobre sua complexa saída de Praga fugindo do nazismo, sua vinda para o Brasil com cerca de 20 anos. Todo o livro centra-se em torno da própria autocompreensão e da compreensão de seus amigos mais íntimos e fieis. Bodenloss é, sem dúvida, um livro sobre filosofia e sobre a amizade sem a qual não filosofia. Amizade, esse valor ético esquecido entre nós, aparece em Bodenloss como admiração e respeito, como diálogo sincero, não adulação ou conchavo. Também a amizade é, ali, uma prática de sinceridade. O que Flusser fala sobre Vicente e Dora Ferreira da Silva, sobre Guimarães Rosa, sobre Haroldo de Campos e vários outros diz respeito ao gesto atencioso para com este outro que ele sentia como o desafio de uma vida, como o mais constitutivo de si justamente porque mais estranho. Quem pode viver humanamente sem este desejo de alteridade? Ora, os amigos de Flusser o situavam em sua falta de chão e muitas vezes eram tão sem chão quanto ele.

Assim, Flusser fala da “falta de fundamento”, a tradução de Bodenloss, algo como um signo originário, a expressão que melhor traduziu sua vida desde a saída de Praga. Como para todo imigrante, viver na falta de chão é viver em suspenso sobre um abismo. Para um imigrante que deixava a morte de toda a sua família para trás (ainda que os mortos continuem a falar dentro de quem vive), viver era conviver com espectros, inclusive o próprio. Restava para Flusser, depois te ter perdido tudo objetivamente e também subjetivamente (qualquer fé, fosse na religião que nunca existiu, na possibilidade de ser escritor ou no marxismo), seguir no sentido de “apostar absurdamente a própria vida: isto é ser mestre na arte da falta de fundamento.” Assim Flusser escreve tentando compreender a si mesmo diante daquilo que faltou depois de Praga: a realidade. A falta de fundamento é essa ausência de realidade, esse viver em jogo, esse viver num “faz-de-conta deliberado”.

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As religiões todas sempre foram, segundo Flusser, “métodos de proporcionar fundamento”. A religião, contudo, não sustenta sua própria promessa de chão, porque o absurdo logo a corrói. O fundamento prometido pela religião, ao mesmo tempo faz perder a religiosidade. A religiosidade, para Flusser, não é uma adesão a uma igreja, é muito mais o convívio incerto com a própria vida. A sensação de absurdo. É justamente viver no que Flusser chama de “clima” da religiosidade – o que significa que “todos os nosso problemas são, em última instância, religiosos” – que define essa sensação de estar fora do mundo enquanto se está de algum modo dentro dele. Absurda falta de chão.

Creio que, em nossa época, todos vivemos um pouco assim, nessa religiosidade que é a vertigem. Uns desesperam e vão às igrejas, outros desesperam e vão para o xópim, ao turismo, ao trabalho, às drogas; os menos desesperados observam sem saber o que fazer. (Penso: quem nunca sentiu vontade de fugir pra Marte na época do Natal que atire a primeira pedra…) Nossa época é aquela em que não se vive sem algum desespero: resta saber o que podemos fazer com ele. Talvez tenha sido sempre assim e isso faça de algum modo parte do nosso modo mais objetivo de estar no mundo. Pois que algo como um “sentido” nele não se apresenta. E quem consegue inventá-lo fica com a sensação de que viveu em nome de algo falso, mesmo que tenha sido verdadeiro em seu gesto. Ou vivido em nome de algo verdadeiro, mesmo que o gesto tenha sido falso.

Mas quem poderia em uma época como a nossa ser dono de seu próprio desespero? Flusser fala de um “desespero puro” como o “perigo do encontro consigo mesmo”. Quem estaria disposto a uma coisa dessas? Para quê? Para, como ele diz: “projetar uma vida sem fundamento”?

Nessa hora todos nós que ainda pensamos a partir de um tempo histórico em que a coragem e a covardia se entrelaçam dialeticamente somos amigos de Flusser. Poderíamos estar descritos em seu livro como personagens perdidos na vasta história do mundo em que, de qualquer modo, somos sempre vencidos. Poderíamos preservar a nossa dignidade reconciliando-nos com esse fracasso. Ao mesmo tempo, a dignidade da coisa que é viver, realiza-se eticamente, na tentativa de viver do modo mais justo possível. Este modo implica a abertura ao outro, o gesto básico do reconhecimento, da humildade que não é humilhação. Fora dela, a condição humana torna-se inumana, desumana, anti-humana.

A escolha é nossa mesmo quando não parece que tenhamos nenhum caminho a seguir.

P.s. Em tempo: em janeiro a Revista Cult publicará um dossiê sobre Vilém Flusser. Só posso dizer com alegria filosófica: VIVA!

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