Big techs e a organicidade da vida

Big techs e a organicidade da vida

 

Desde a ascensão de Donald Trump ao poder, o universo digital se transformou. O processo está só começando, mas as promessas já são monstruosas. Entre outras figuras, Mark Zuckerberg, da Meta Platforms, que aparecia como um liberal em seus discursos, correu em direção à extrema direita para não ficar atrás na corrida por mais dinheiro e poder – a China foi uma rasteira inesperada, mas ainda não se sabe sobre detalhes e desdobramentos desse capítulo chinês.

Não é novidade que as plataformas digitais são sustentadas por um universo tenebroso de interesses. Os nossos dados, afetos e trabalhos são roubados, usados e explorados. Os algoritmos favorecem uma lógica 0 OU 1, sem sutilezas, sem mediações, sem meandros. No sistema digital matemático, qualquer informação assume um valor numérico. Exige uma espécie de cálculo. Em vez da base decimal que orienta 10 valores possíveis, o sistema digital é binário. Isso quer dizer que cada dígito possui apenas 2 valores possíveis, definidos como “níveis lógicos”. Neles adota-se apenas o valor 0 (zero) ou 1 (um), sendo a conjunção OU essencial para se pensar sobre aquilo que está em jogo no interior de nossas vidas e relações mediadas por essas plataformas.

Observem bem: 0 e 1 não precisariam expressar dois polos antagônicos. Há uma infinidade de números entre 0 e 1. Ambos são da classe númerica, o que poderia indicar aproximação, semelhança, irmandade (0 poderia ser irmão, primo, parente do 1). Em vez do OU teríamos o E: 0 E 1, amigos com suas afinidades e diferenças. O ENTRE 0 e 1 seria outra possibilidade de relação. Enquanto a conjunção OU polariza, a preposição ENTRE estabelece um território limiar com suas densidades, acidentes, dobras, curvas, desvios, recuos e avanços. Isso OU aquilo indica uma lógica de guerra, ainda que suave. A direção tomada diante de uma bifurcação aparece de maneira total, sem oscilações, sem hesitações, sem a dança sobre os frágeis fios capazes de manter a suspensão ENTRE o sim E o não. Uma bifurcação em que, uma vez assumida a direção escolhida, não há como retroceder – o mar de consequências aparece como inevitável. O OU coloca em cena dois pontos isolados e distantes, ao passo que o ENTRE exige construções delicadas, sendo elas imaginárias ou não: ligações, fios, desenhos, linhas retas ou curvilíneas. Com isso, iniciam-se as formas, sempre múltiplas.

A filósofa francesa Catherine Malabou concebe a forma a partir de um campo paradoxal: trata-se de uma marca metamorfoseável, embora imóvel, do pensamento. Indissociável do movimento ou de um fluxo constante de transformações, a forma carrega uma dimensão histórica que a força para além de si mesma, sem romper-se por completo. Aqui se enfatiza o processo dinâmico de metamorfoses. Não há fim último, mas imperam transformações, cujo efeito seria a mutabilidade como a própria estrutura da realidade. Colocando em xeque a destruição como modo de romper com a forma estabelecida, Malabou admite uma impossibilidade de superar por completo uma forma dada. Não seria possível forjar outra forma oriunda de um espaço sideral e tornar magicamente inexistentes as formas já estabelecidas. Transformar significa recuperar a plasticidade daquilo que, por razões de poder, parecia irrefutável ou inquestionável. O que força a transformação da forma se preserva continuamente em uma zona de limiar, já que não seria possível saltar a linha divisória entre a forma e aquilo que lhe resiste.

É possível supor que sempre haja algum modo de apego à estrutura estabelecida que impede e torna impossível a supressão completa de formas pregressas. Superar tal apego não depende, por conseguinte, apenas das críticas que mapeiam falhas da integridade formal. Trata-se antes de saber que nenhum apego pode ser absoluto, o que torna o trabalho de transformação algo muito rente às formas que já estão desde sempre sendo forçadas em seu próprio limite. Se há um apelo ao desapego absoluto, tal demanda revela antes o apego aderente e refratário à sua dissolução. Ou seja, a negação do apego, paradoxalmente, o reafirma. Por isso, anda-se em círculos com a negação que não passa pelo vagaroso processo de transformação e apela à gramática aparentemente decisiva do OU. Se a linguagem favorece apenas antagonismos, certo OU errado, isso OU aquilo, a dança da incerteza fica sacrificada, sem espaço para a porosidade que convida a habitar um vazio bordejado de delicadeza.

Além do viés antagonista das redes, muitas camadas do mundo sensível foram nelas quase inteiramente suprimidas. O sentido quase exclusivo é o olhar. Nas plataformas, ele está absorvido pelo cálculo que classifica valores fetichistas nas trocas mercadológicas. O Instagram recebeu usuários pela vontade de registar memórias, compartilhar recortes da vida, expor prismas e perspectivas, ampliar laços, saber mais sobre universos distantes. Em suma, desejo de ampliação das conexões afetivas e dos saberes.

Não se pode negar, porém, que o Instagram também infiltrou a lógica da mercadoria nos lugares mais recônditos de nossas almas. O gozo tanto de ser um voyeur quanto de ser um exibicionista de conquistas, selfies, laços, produções contamina muitos elementos delicados da vida. O Instagram passou a sustentar modelos de trabalho (influencers digitais e produtores de conteúdos e marcas) em função dos quais se põe quase tudo como moeda de likes, compartilhamentos, visualizações. Enquanto os CEOs das big techs nadam em dinheiro, a organicidade da vida é mortificada em nome das cifras estabelecidas pelos nossos afetos.

Seja como for, quero crer que as concessões dos diferentes usuários, feitas às plataformas, também se relacionavam a um jogo importante que agora precisaria ser revisto. Facebook, Instagram, Twitter e outras empresas passaram anos roubando, capturando, esquadrinhando, revirando nossos dados. Com isso, estabeleceram algoritmos para atender a novos nichos de mercado, baseados em diferentes identidades. Lucraram em todas as esferas da vida: posições políticas, afetos, relacionamentos, diferenças culturais, materiais, raciais, de gênero, religiosas, esportivas, intelectuais, artísticas. Talvez o nosso apego à estrutura capitalista mais entranhada tivesse relação com alguma aposta na antiga ideia liberal de equidade nas condições de concorrência no mercado – todas as mercadorias estariam “igualmente” no game competitivo desses aspectos e os algoritmos preparados para atingir com a mesma intensidade as mais diferentes bolhas.

Embora não haja ilusões de superação do capitalismo na igualdade oferecida pelo comércio das redes, o preço pago pelas minorias de se vestir como mercadoria para participar de tal sistema talvez tenha compensado sacrifícios. Isso porque condições de vida e linguagens antes inexistentes no jogo da visibilidade e das trocas passaram a existir com mais muito vigor. Obtiveram valor de troca e, consequentemente, diferentes formas de poder na sociedade estruturalmente capitalista. Os resultados podem ser bastante polêmicos, mas é inegável que houve uma rearticulação significativa sobre quem participa de maneira ativa de tal estrutura.

Ainda que o compromisso liberal de Mark Zuckerberg fosse bastante questionável, agora ele declaradamente assume o abandono desse lugar. Junta-se à extrema direita, vangloriando uma posição supremacista branca e misógina para reorganizar os algoritmos de suas plataformas. Cabe a urgência de uma pergunta: como repensar a nossa participação nessas plataformas ou fora delas agora?

Este texto certamente estará nas redes e algoritmos programados por Zuckerberg. Como indiquei, a partir de Catherine Malabou, sempre existe uma medida de impossibilidade na busca por superar uma forma dada nos passos dados na transformação. O modo como nos situávamos na forma algorítmica anterior, transformando o que parecia possível nas brechas das trocas estabelecidas nas redes, já havia sido incorporado em nossas vidas. Mas no momento em que a extrema direita passa a comandar ostensivamente o jogo, essa forma que modela as redes será muito diferente. Seria ingenuidade seguir com as mesmas estratégias, como se nada tivesse mudado nas bases em que depositamos nossas expressões, manifestações e formas de gozo nas redes.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), A abstração e o sensível: Três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).

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