Todo preso é um preso político
(Arte Andreia Freire)
Aos 18 anos de idade, a primeira condenação: tentativa de assalto à mão armada. Meu irmão tentou roubar 120 reais e passou cinco anos e alguns meses preso. Um mês e meio fora do cárcere, já com 23 anos, encontrou uma batida policial. “Eu não estava com nada, Bi. O juiz vai me liberar”, escreveu em uma carta. Não devia saber que o jornal do interior estampara seu retrato, nome e sobrenome ao noticiar a prisão por tráfico. Meses depois, a condenação a sete anos em regime fechado. Aos 30 ele deve voltar para casa. Talvez consiga cuidar de sua filha quando ela tiver dez anos. E aqui pergunto: você se lembra do que viveu entre 18 e 30 anos? Ou tem consciência do quanto é estruturante esta fase da vida? O que significou a presença, ou a ausência, de seu pai, desde seu nascimento até os 10 anos de idade? Da casa confortável de onde escrevo este texto, desfrutando dos privilégios de que meu irmão sempre foi privado, sinto raiva. Por mim. Por ele. Pelas mais de 600 mil pessoas presas no Brasil. Por suas filhas, mães, pais, irmãs, companheiras. Pela liberdade expropriada de pessoas negras desde os navios negreiros até hoje. Não à toa Angela Davis milita pelo que denomina abolicionismo da prisão.
“Cada sentença um motivo, uma história de lágrima/ sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio/ sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo detento”. As rimas entoadas pelos Racionais MC’s sugerem a ação do tempo como um dos ingredientes do cárcere. O documentário norte-americano A 13ª emenda explicita a história do encarceramento massivo. Por mais que os dados apresentados, tanto históricos como estatísticos, digam respeito aos Estados Unidos, os paralelos com a realidade brasileira são evidentes, mesmo que o racismo nos dois países tenha se estruturado de formas diferentes. Afinal, aqui, a segregação racial não foi legal. Mas basta circular em ambientes ricos – brancos – e pobres – negros – para perceber que ainda vivemos uma segregação racial amparada por muitas leis, ainda que não seja obrigatória por lei.
Com a abolição do sistema econômico da escravidão, leis de vadiagem e vagabundagem colocaram homens negros na cadeia. O cinema e a imprensa foram importantes para construir o temor no imaginário social: pessoas negras sempre são uma ameaça. Com o aumento populacional, cresceram os índices de criminalidade. Crise econômica, direitos sociais destruídos, mais pobreza e criminalidade. E o aumento exponencial do encarceramento massivo com a chamada guerra às drogas. No Brasil, a população carcerária aumentou 267,32% de 2002 a 2016. Dois em cada três presos são negros. Um em cada três responde por tráfico de drogas. Aquilo que Angela Davis escreveu, em 2003, sobre os Estados Unidos, no livro Are prisons obsolete?, ainda sem tradução para a língua portuguesa, vale também para o Brasil: “Na época imediatamente posterior à escravidão, os estados do Sul se apressaram a desenvolver um sistema de justiça penal que poderia restringir legalmente as possibilidades de liberdade dos escravos recentemente libertos. As pessoas negras se tornaram objeto prioritário de um sistema de condenação, ao que muitos chamaram de reencarnação da escravidão.” Sistema que persiste ainda hoje.
Mas as prisões não são inevitáveis? Não é para onde deve ir quem comete delitos graves?, alguém pode perguntar. Recorro novamente a Angela Davis: “Poderíamos chegar a despenalizar o uso de drogas e o comércio de serviços sexuais? Poderíamos levar a sério estratégias para favorecer uma justiça restaurativa frente a uma exclusivamente punitiva? Sermos capazes de desenvolver alternativas efetivas implica uma transformação, tanto das técnicas para determinar o que é ‘delinquência’, como das condições sociais e econômicas que conduzem tantas crianças de comunidades pobres, especialmente das comunidades negras, ao sistema penal juvenil e logo à prisão. O desafio mais urgente e difícil de alcançar hoje em dia consiste precisamente em explorar criativamente novos marcos jurídicos nos quais a prisão não figure como nossa maior bandeira.”
Neste ponto, você já deve ter se lembrado do filho branco e rico da desembargadora, flagrado com 130 quilos de maconha, que não ficou na cadeia. E de Rafael Braga, o único preso político de junho de 2013, condenado a 11 anos e três meses por tráfico de drogas e associação criminosa, mesmo com testemunhas sustentando que o flagrante foi forjado. Deve ter pensado também nos 63 jovens negros assassinados por dia no Brasil. Deve ter associado isso tudo às manifestações racistas de Charlottesville. E à retórica de guerra propagada cada vez mais contra favelas e periferias, como justificativa da militarização dos territórios, de execuções, prisões. A guerra às drogas é a atualização de um projeto genocida. A ela, as mais expostas e vulneráveis têm sido as mulheres. Para um retrato sensível das situações a que mulheres têm sido expostas, recomendo a animação “A Política de Drogas é uma questão de mulheres”, lançada pelo ITTC (Instituto Terra Trabalho e Cidadania) em junho deste ano, disponível na internet.
Dentre tantas violências a que estão expostas as mulheres, está, é evidente, o encarceramento. Em quinze anos, o número de presas cresceu 567%. A maior parte delas condenada por tráfico. Especificidades como a menstruação são ignoradas pelo sistema penitenciário. Outras, como a maternidade e a amamentação, são tratadas com precariedade. Muitos são os relatos das que foram obrigadas a parir algemadas. O tempo mínimo de 6 meses para o bebê conviver com a mãe presa é, na prática, o tempo máximo das que exercem esse direito. O livro Presos que menstruam: a brutal vida das mulheres tratadas como homens nas prisões brasileiras, da jornalista Nana Queiroz, permite uma aproximação desta realidade, por meio de pequenos relatos que mostram a complexidade e as experiências de sete presidiárias.
Minha próxima tarefa, ao terminar este texto, é telefonar para o presídio onde está meu irmão para saber se meu nome já consta no hall de visitantes. Vou ligar muitas e muitas vezes até ser atendida. E talvez você não saiba, mas para enviar cartas ou encomendas para uma pessoa presa é obrigatório ter a autorização do Estado. Para pedir a autorização, na maior parte dos presídios de São Paulo, é necessário enviar cópia autenticada do RG e CPF, comprovante de residência, atestado de antecedentes criminais, duas fotos 3 × 4. E se a pessoa for transferida, como aconteceu com o meu irmão, você precisa mandar tudo de novo. Ninguém vai te notificar sobre a transferência. Para descobrir, um pacote vai voltar pelo correio ou uma visitante vai ser mandada de volta para casa depois de todas as adversidades de locomoção até os presídios de beira de estrada. A atendente do correio pode te olhar com desconfiança, pena, ou então gritar bem alto para toda a fila ouvir que seu pacote não vai chegar até o presidiário se o número da cela não estiver no endereço, mesmo que não seja verdade. #ParemDeNosMatar! E #LibertemRafaelBraga.
(1) Comentário
Concordo. Pois a justiça de nosso país é seletiva e os penalizados duramente e até injustamente são os, pobres, negros, prostitutas etc.