Antes do cinema, Bernardo Bertolucci vivia ao lado da poesia

Antes do cinema, Bernardo Bertolucci vivia ao lado da poesia
O cineasta italiano Bernardo Bertolucci (Central Press/Hulton Archive/Getty Images)

 

Aos 19 anos, o jovem Bernardo Bertolucci buscava o cinema e levava com ele, nessa busca, o amor pela arte e pela literatura. Vencedor em 1961 do prêmio Viareggio, o livro de poemas Em busca do mistério não é apenas uma curiosidade na trajetória de um cineasta. É um estágio definitivo para o entendimento do amoroso, nostálgico e belo universo criado por Bertolucci em toda sua produção artística. Como definem os italianos, seus poemas fazem parte de seu repertório de imagens da região de Parma, da vida em família e da luta da intelectualidade do país frente à herança fascista sempre presente. No mesmo ano em que Bertolucci ganha reconhecimento por seus versos, abandona seu curso de letras modernas, em Roma, para se tornar assistente de Pier Paulo Pasolini nas filmagens de Accattone. É todo um capitulo da história da cultura que começa.

SOBRE UMA FOTOGRAFIA

Que vontade de fugir de Roma,
sem dizer nada à família
nem aos que me saúdam no caminho,
se descubro que coisa muda
sobre as gotas e na pupila
de minha mãe – como brilha
e arde a figura sentada,
feliz e obediente, da morena,
jovem na fotografia!

Perdoa-me, se sabes amar a vileza
de teu filho, decidido a sofrer
em voz alta, para que o escutem.

OS CÃES DO LITORAL

Nus o quanto bastava
para deixar-se escorregar
na inconsciência, andavam
dois cães, dois andarilhos
animais costeiros
advindos farejar
junto de nossos pés.
Tu rias: nunca mais
te rias, Marina, já sabes
que posso recordar
o teu riso, e um suspiro
vai e vem a apagar
no teu riso o teu mar.
Entre os pés de avelã
e o menino que já
começara a pesar
sobre ti, tinha o verde
de um sol filipino
e atônito perdia-se
o lago sobre a costa.
No cheiro de relva
que cresce sob as plantas,
eu me espantava à saciedade
de mim mesmo: era
feliz e envelhecido
de ter abandonado
tanta coisa importante.

E nada sabem, ou ouvem
os cães que retornam,
imóveis, orientais lagartas,
dois amantes de filme
de Mizoguchi.

AOS MEUS VINTE ANOS, COM IRONIA

Sem cheiro nenhum, luzindo distante
como as casas depois da água, algo raras,
a minha crepuscular maturidade
viu uma alma liberal da planície do Pó.

Maturidade, digo eu: fazer o amor
sozinho na cama, acordar atrasado
aos atrasos domésticos, como aos do coração,
fazer do olho um lago enorme e mentiroso.

A aridez é toda deste jogo
que detesto, que arde no fogo sulfuroso
que pouco a pouco se alimenta em mim.

Ciumento de mim, já não me sobram álibis,
recuso-me até mesmo a antiga monotonia,
meu único empurrão, minha verdadeira poesia.

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