Na Berlinale, um Brasil sem concessões
Em "Meu nome é Bagdá", Grace Orsato vive Bagdá, uma skatista de 17 anos (Foto: Divulgação/Manjericão Filmes)
Durante o 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, falou-se muito sobre a quantidade de filmes brasileiros selecionados: foram 19 produções incluídas nas mais diversas categorias, superando com folga o recorde de 12 filmes alcançado nos dois anos anteriores. A cinematografia brasileira estava presente com longas e curtas-metragens, além de médias-metragens e projetos de videoarte. Para os alemães, o Brasil se tornou a terceira cinematografia estrangeira de maior representatividade no evento, atrás apenas das consolidadas indústrias norte-americana e francesa. Os números chamam atenção para a riqueza do nosso audiovisual e para o reconhecimento estrangeiro – ironicamente, quando o profissional da arte sofre graves ataques institucionais e simbólicos em seu próprio país. A quantidade de filmes é expressiva, mas uma vez passado o festival, chega o momento de analisar quais discursos e formas foram valorizadas pela Berlinale.
O cinema brasileiro apresentado aos jornalistas do mundo inteiro foi predominantemente jovem. Talvez Karim Aïnouz seja o diretor de maior experiência dentro do grupo, e mesmo assim, esteve representado por um registro que não lhe é comum: os documentários urgentes e políticos, com a ajuda de uma ferramenta jovem por excelência, o telefone celular. O cineasta visitou a Argélia de seus avós com um projeto de filme em mente; descobriu uma manifestação popular e ousou fazer um segundo filme, não planejado, intitulado Nardjès A, nome da jovem manifestante que acompanha durante um dia inteiro. Com o celular em punho, misturou-se à multidão, ouviu as vozes de homens e mulheres, descobriu o que levava tantas pessoas a repudiarem o governo local. Em particular, buscou um paralelo com a situação brasileira: o que faz os argelinos protestarem toda sexta-feira, há meses, apesar de sofrerem intensa violência policial, enquanto os brasileiros, em situação de crise econômica e sub-representação política, encontram-se em tal estado de paralisia? Em entrevista, Aïnouz explicou que a Argélia foi conquistada após longo processo de descolonização, mas a história brasileira não nos permite sentir que o país nos pertence, e que possuímos o direito de reivindicá-lo. Faz sentido.
Nosso principal representante, o drama histórico Todos os mortos, foi dirigido por dois cineastas jovens: Marco Dutra e Caetano Gotardo. Nenhum dos dois é inexperiente, somando diversas passagens por festivais de alto nível. No entanto, a seleção principal de Berlim constituiu um feito inédito para ambos. Ainda mais surpreendente foi a forma de cinema apresentada: uma releitura histórica sem a catarse de Bacurau (2019) nem de Joaquim (2017), porém eloquente e profundamente intelectual. A revolução dos escravizados libertos ocorre através da fala: enquanto as escravizadas do Brasil do final do século 19 se emancipam, podendo recusar os pedidos de servidão das baronesas, estas, por sua vez, entregam-se à loucura ou doença. A aristocracia literalmente definha, enquanto indivíduos negros se emancipam na São Paulo caótica pós-proclamação da República. Dutra e Gotardo apostam em planos fixos, longas conversas posadas e gestos sóbrios. O enfrentamento evita o sangue enquanto mantém o decoro: brancos e negros, mulheres e homens, católicos e candomblecistas enfrentam-se dentro dos mesmos cômodos, na chave da negociação verbal. Em tempos de Brasil histérico e avesso à conversa com as diferenças, o filme relembra a História pela possibilidade (e necessidade) de confronto com o outro.
Ainda na chave da valorização da palavra, Vil, má traz as confissões verídicas e/ou ficcionais de uma rainha da literatura sadomasoquista, como se autodenomina Wilma Azevedo. Ela compartilha histórias pessoais misturadas àquelas que escreveu, fundindo a biografia documental com a biografia imaginária. A autora cria diante da câmera, estimulada pela liberdade estética do diretor Gustavo Vinagre, que lhe oferece um trono, um plano fixo e a possibilidade da expressão livre e ilimitada. O documentário se torna menos um objeto de registro do real do que uma possibilidade de invenção, algo tão particular ao registro ficcional. O sadomasoquismo e a releitura do Brasil República unem-se pela possibilidade de reconstruir a história dos indivíduos pelo prisma da memória afetiva, de essência subjetiva e cambiável. Todos os mortos conta inclusive com fantasmas que perambulam pelos casarões decadentes. Em determinado momento, são eles, os mortos invisíveis, que observam os vivos. Já Wilma discursa sobre o prazer obtido em violências sexuais que não viveu. Ambos os projetos recorrem à imaginação do espectador, assim como à capacidade crítica de questionar os dispositivos à sua frente. Em tempo de notícias falsas e delirantes, constituem um exercício fundamental de relacionamento com fatos e as invenções.
A cidade de São Paulo, presente em Todos os mortos, reaparece como terra dos imigrantes em Cidade pássaro, de Matias Mariani, e como terreno das manifestações periféricas em Meu nome é Bagdá, de Caru Alves de Souza. De modo geral, os diretores evitaram o ponto de vista dos homens de poder, do controle institucional das ações. O cinema brasileiro presente na Berlinale foi aquele destinado a reconhecer as invisibilidades do passado e do presente. Esta constitui uma forma de registrar aqueles que ninguém vê, ou não quer ver: os nigerianos do centro da cidade, as mulheres skatistas, os descendentes de escravos, as adolescentes transexuais de Alice Júnior (Gil Baroni), os homens gays dos espaços rurais em Vento seco (Daniel Nolasco), os moradores silenciados perto das hidrelétricas em O reflexo do lago (Fernando Segtowick), as adolescentes progressistas de vilarejos conservadores em Irmã (Luciana Mazeto e Vinícius Lopes). Deixa-se à televisão aberta o retrato dos homens brancos e musculosos e das mulheres loiras e esculturais em reality shows; deixa-se às telenovelas a função de escalar galãs e mocinhas: o cinema brasileiro está sendo representado pelos membros das beiras.
Não por acaso, as estéticas acompanham o olhar de estranhamento em relação às normas: a arquitetura paulistana se transforma num cenário de ficção científica em Cidade pássaro, projeções e magias irrompem no universo cotidiano de Irmã, performances musicais entrecortam o naturalismo de Meu nome é Bagdá. Para falar de pessoas invisibilizadas, utiliza-se formas de imprimir pontos de vista diversos. As comunicações se multiplicam, incluindo dialetos africanos, o inglês dos viajantes, a riqueza das línguas indígenas. Enquanto os governos conservadores buscam imprimir a norma a todo custo – as famílias conservadoras, cristãs, heteronormativas, com superioridade hierárquica de homens sobre mulheres -, os diretores expressam, cada um à sua maneira, a presença orgulhosa de um país diverso. A sociedade contemporânea não cabe nos moldes impostos, parecem dizer os filmes, transbordando ao universo lúdico e politizado das diferenças. As produções nacionais selecionadas em Berlim contêm afetos familiares, inter-raciais; laços homo, hétero, cis e trans; sexo despudorado e romances impossíveis.
Este Brasil de braços abertos ainda permite uma quantidade expressiva de coproduções com países vizinhos, de onde resultaram alguns dos filmes mais radicais da Berlinale. Chico Ventana también quisiera tener un submarino, parceria Uruguai-Argentina-Brasil, consiste numa viagem simbólica por três experiências solitárias, unidas pelo corte generoso e mágico da montagem: de repente, o trabalhador de um navio de luxo descobre uma portinha que leva ao banheiro de um apartamento de classe-média. Outra portinha levaria a um vilarejo indígena. A ficção ultrapassa espaços e coerências científicas para imaginar um contato com a diferença tão forçado quanto voluntário – afinal, as pessoas se movem por curiosidade. Los conductos, majoritariamente colombiano, imagina a revolta solitária do membro de uma seita-gangue contra seu mestre. A imagem valoriza a sombra, enquanto os sons sugerem ações ausentes em cena. Caberá ao espectador desenhar mentalmente a vingança sugerida – algo próximo dos fantasmas de Todos os mortos, diga-se de passagem. Un crímen comun, colaboração com a Argentina, imagina uma socióloga confrontada à fronteira de sua convicção política quando colabora, ao menos indiretamente, com a morte do filho da empregada. A esquerda é colocada diante do espelho, disposta a testar seus limites.
Entretanto, não se encontrou na Alemanha o cinema que o governo federal deseja impor atualmente. Entre os diversos retratos da religião, nenhum deles valoriza o cristianismo como forma superior de crença. Entre as diversas famílias retratadas, em nenhum momento a heteronormativa se impõe às demais. O homem branco, poderoso, heterossexual e sudestino, aquele que representa hoje a reação ao progresso social, aquele que vocifera em nome de Deus e dos bons costumes, aquele que representa o suposto crescimento econômico e o combate à corrupção, não deu as caras em Berlim – nem nas telas, nem nas equipes presentes. Talvez o que irrite tanto o presidente e seus seguidores diante desta cinematografia forte, diversa e aclamada, seja o fato de não se reconhecer em tela. Ora, como ousam os artistas não falarem de alguém como eu? Narciso não gosta do que não é espelho, e os dirigentes não têm a coragem de se confrontar ao discurso da diferença. No festival de Berlim, reinou o Brasil da diversidade e da aceitação. Para além das palavras de ordem em coletivas de imprensa, o gesto político se encontra nestes filmes enquanto projeto coletivo, dando voz àqueles que o poder busca silenciar.
Bruno Carmelo é crítico de cinema, mestre em Teoria de Cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE ), professor de cursos sobre o audiovisual e editor do Papo de Cinema. Escreve às segundas.