Ba(q)uianas à brasileira
Marcelo Drummond como Dioniso e Zé Celso como Tirésias durante "As bacantes" (Foto: Bob Sousa)
“Mastigado na gostosura quente do amendoim…/Falado numa língua curumim/De palavras incertas num remelexo melado melancólico…/Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons…/Molham meus beiços que dão beijos alastrados/E depois remurmuram sem malícia as rezas bem-nascidas…”.
Mário de Andrade, O poeta come amendoim
E eis que Dioniso, o deus cabrito, abundante em cachos, chega ao terreiro do Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona para se manifestar em toda sua alegria TragiCômica Orgyástica nesta primavera de 2016 – ano em que dos dentes dos dragões da maldade em luta contra os santos guerreiros nasceram inúmeros Penteus Brasil adentro e mundo afora. E eis que não haveria terreno melhor para acolher divindade tão lúbrica e lúdica a um só tempo. Terreiro de cujo solo brota uma caesalpinia echinata antropo fêmea, um pau-brasil macho e viril. Totêmico, fálico, axial, onfálico.
Vinte e um anos depois de ter estreado em Ribeirão Preto (SP) e duas décadas após ter cumprido uma bem-sucedida temporada em São Paulo, no Teatro Oficina, As bacantes volta a ser encenada, até o próximo dia 23 de dezembro, pela companhia paulistana dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Trata-se de uma oportunidade rara de o público da cidade entrar em contato com um texto clássico da dramaturgia universal renovado pela lufada de ar quente, vibrante, estrepitosa que o diretor costuma soprar por sobre todas as suas encenações. Comemorando seu 58º ano de existência, o Oficina conjuga em cada uma de suas criações o verbo antropofagiar, flexionado pela primeira vez entre nós por Oswald de Andrade – o bissexto dramaturgo modernista cuja peça para ser lida O rei da vela serviu de força-motriz para a renovação estética e política vivida pelo grupo em fins da década de 1960 – e posteriormente pelos tropicalistas, inspirados, dentre outras referências, justamente por esta encenação da peça para ser lida, que virou, por fim, peça para ser deglutida. Com as bênçãos do bispo Sardinha e de todos os papas da contracultura daqueles anos rebeldes.
O Oficina, eles mesmos o dizem, “antropofagia” música, artes plásticas, cinema, arquitetura, urbanismo, dança e poesia em seus ritos teatrais resultantes de processos de cocriação entre artistas e público. Nada mais báquico, euridipiano, carnavalesco, metateatral. As bacantes constituem uma espécie de canto do cisne do dramaturgo grego Eurípides (Salamina, 480 a.C.-Pela, 406 a.C.), representada em Atenas nas Dionísias Urbanas um ano após a morte do autor. Trata-se de uma peça em que os personagens assumem muitas vezes o papel de espectadores da ação que se desenrola em cena, enquanto o público é convidado a exercer, no sentido oposto, o papel de elemento constituinte desta mesma ação. Forma e conteúdo se interpenetram, e a fusão divindade-oficiante do rito que o dionisismo como religião opera com muita ousadia se dá igualmente na esfera da inter-relação ator-espectador.
A peça trata da chegada do deus Dioniso travestido de forasteiro a Tebas, onde ele é cultuado pelas mulheres da cidade, mas recusado por seu governante máximo, Penteu, cuja ascensão ao poder é explicada por duas variantes míticas: o filho de Agave sucedeu naturalmente a seu avô Cadmo no trono tebano ou chegou a ele por meio do emprego da força e da violência, tomando posse de uma cidade que era governada por seu tio Polidoro. Basileús ou tyrannos, democrata ou golpista, Penteu irá conhecer a fúria da divindade, sofrendo na própria pele a aniquilação total. (Segundo o Dicionário mítico-etimológico de Junito de Souza Brandão, o nome Penteu provém do verbo “páskhein”, “cujo sentido inicial é ter uma sensação ou impressão, daí experimentar uma dor, afligir-se, sofrer, donde [advém] o antropônimo o sofredor”).
O texto de Eurípides constitui a mais completa reunião de informações a respeito do culto de Dioniso, divindade venerada já em tempos micênicos, cuja presença na ilha de Ceos, por exemplo, data de, pelo menos, o século 15 antes de Cristo. Dioniso, deus da fertilidade agreste, cujos símbolos vegetais são a hera e a videira, representa, segundo o helenista alemão Walter Friedrich Otto, em Teofania: o espírito da religião dos gregos antigos (traduzido por Ordep Trindade Serra), “o mundo do puro prodígio, da exuberância transbordante de todo viço, o poder mágico da videira que torna prodigiosa a própria alma humana, unindo-a com o infinito. É também o mundo do feminino primordial, porém num outro sentido, distinto do de Afrodite. Aquela a quem Dioniso se revela não é a mulher amante que se entrega, nem a que pare filhos, e sim a que nutre e cuida, fascinada pelo milagre da vida universal. Neste caso, não vige fronteira entre o humano e o bestial: as mulheres dionisíacas oferecem o seio materno às crias miúdas dos animais selvagens, deixam-se enlaçar por serpentes que lambem suas faces com ternura. E quando as arrebata o espírito de Dioniso, toda a natureza se lhes entrega como uma amante. […] O próprio Dioniso, eterno amante, unido com a única (Ariadne) de modo tão íntimo como nenhum outro deus o é com sua amada, enlaçado com ela ergue o olhar para as alturas, como se escutasse nos astros a música de seu universo mágico e do eterno feminino”.
Pois é justamente este veio da vida transbordante do reino dionisíaco que José Celso Martinez Corrêa explorou com a capacidade poética ímpar que lhe é peculiar na conversão do texto de Eurípides em uma “ópera de carnaval elektrocandomblaica”.
O diretor é, dentre os nossos homens de cultura, um dos que melhor sabem fazer dialogar a tradição e a invenção, sem baratear conteúdos que exigem densidade, tampouco lhes cobrindo com mantos formais demasiadamente veneráveis. Zé Celso releu As bacantes a partir de três eixos básicos que dão sustentação ao texto de Eurípides: o verbal, o cenográfico e o musical. Mestre das palavras ambivalentes, dos jogos de duplo sentido, Zé manteve a oscilação existente no original entre os registros filosófico e poético, mas a ampliou pelo recurso da carnavalização por meio da qual Eurípides é poeta quando fala das mazelas e das agruras políticas cá desta terra e é filosofo também quando seus personagens entoam por aqui sambas e marchinhas de carnaval. Em relação ao aspecto cenográfico, o diretor abole uma vez mais as fronteiras entre palco e plateia, convidando cada espectador a tomar parte no ritual. A operação parece simples, mas está intimamente ligada à matéria do texto-matriz em primeiro plano e do próprio ritual dionisíaco em caráter mais amplo: cada espectador-participante é arrancado da condição de si mesmo e possuído pela máscara, que perturba todas as aparências. “A epifania de Dioniso”, afirma Jean-Pierre Vernant em “O Dioniso mascarado de As bacantes”, “não escapa apenas da limitação das formas, dos contornos visíveis. Ela se traduz por uma magia, uma maya, que perturba todas as aparências. Dioniso está aqui quando o mundo estável dos objetos familiares, das figuras tranquilizadoras, oscila para se tornar um jogo de fantasmagoria onde o ilusório, o impossível, o absurdo tornam-se realidade”. A maior lição política que se pode extrair da diluição das fronteiras entre o palco e a plateia é a de que um espectador-atuante e um atuador-espectador não conseguem jamais permanecer semelhantes a si mesmos, porque aprendem a encarnar a figura do Outro. O Outro-teatro, o Outro-Dioniso, o deus-sphaleotas, que faz deslizar, tropeçar, escorregar, advertindo para a falsa solidez de práticas e discursos que se fazem passar por naturais e revelando toda sorte de soluções mágicas e de mistificações. Quanto ao registro musical, As bacantes do Oficina investe maciçamente no papel ambivalente da música, seja no âmbito ritualístico, seja no âmbito teatral. Nesse sentido, a tessitura melódica, harmônica e rítmica do espetáculo alterna a fluidez dos instrumentos de sopro ao frêmito dos instrumentos de percussão. O Dioniso de Zé Celso é um deus de bossa nova, marchinhas, sambas e sambas-canção. Mas é também um deus villa-lobiano. Da delicadeza romântica da Melodia sentimental cantada por Bidu Sayão ao fremir e ao rumor do Choro n. 10 e do Mandú Çarará.
A esse respeito vale citar a imagem-síntese do espetáculo: a da caça, abate, sacrifício, despedaçamento e coroação do espectador-touro, entronizado em cena com a máscara do bumba meu boi. Ao som de um Villa-Lobos comoventemente trágico e telúrico, oscilando entre os registros da festa popular e da devoção, um varão é escolhido na plateia para encarnar a figura de Ápis-Baco-Boi, em um misto de festejo laico e gravidade religiosa. Afirma Mário de Andrade em Danças dramáticas do Brasil: “o tema dos bailados é conjuntamente profano e religioso, nisso de representar, um fator prático, imediatamente condicionado a uma transfiguração religiosa”. A cena assim alia cultura primitiva e cultura popular, cuja religiosidade se prende aos ritos do culto vegetal e animal das estações do ano que culmina sublimemente espiritualizado na morte e ressurreição do Deus cristão”.
Impossível traduzir em sabedoria (sophía) discursiva uma experiência teatral que é pura sabença (sophón) corporal-sinestésica. “Sabença não é sabedoria”, a frase utilizada pelo Coro diante de Tirésias e de Penteu, “significaria que o verdadeiro conhecimento provém da poesia”, afirma Trajano Vieira no texto de introdução a sua tradução da peça de Eurípides, no qual ele nos lembra também que Penteu morre de insensibilidade poética. No ano da galopante ascensão de toda sorte de conservadorismos – de matizes racistas, patriarcais, escravocratas e sexistas –, esta encenação de As bacantes se reveste de um caráter de informação inédita, de um discurso inovador. Que se acorra ao belo teatro projetado por Lina Bo Bardi, essa espécie de divindade semélica que pariu em São Paulo dois belos espécimes de teatros-terreiros onde baixam inúmeros avatares de Baco-Brômio-Dioniso – o Sesc Pompeia, onde o espetáculo reestreou no último dia 21 de outubro, e o próprio Teatro Oficina, onde ele agora cumpre temporada regular. A encenação de Zé Celso mostra o quão insana é uma sociedade regida fanaticamente pelo lema da “ordem e progresso”. Que renuncia tal como Penteu a tudo aquilo que a contesta e a contradiz. Por exemplo, a arte do teatro, uma experiência epifânica conduzida por meio do encontro das diferenças e da sobreposição dos opostos. Evoé, bacantes!
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