Bahia de todos os santos

Bahia de todos os santos

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Juvenal Savian Filho

O lema tradicional da Ordem de São Bento é expresso em latim pelo duplo conselho: Ora et labora.

Uma tradução moderna, em língua portuguesa, corresponderia a: “Reza e trabalha!”. Porém, ao ouvirmos atualmente os verbos “rezar” e “trabalhar”, podemos ser levados a pensar em uma prática espiritual composta por repetições de fórmulas e em uma atividade econômica com a qual obtemos nossa subsistência; ambas, aliás, podendo ter conotação negativa.

Por isso, essa tradução “moderna” não é capaz de trasmitir o rico conteúdo da expressão latina ora et labora (cunhada, ao que tudo indica, na Idade Média), nem de exprimir o conjunto da vida beneditina, sobretudo porque não inclui uma atividade essencial à vida monástica: o estudo.

Assim, a melhor maneira de traduzir ora et labora em português parece ser aquela que conserva a proximidade de nosso vocabulário com o vocabulário latino, operando uma simples transposição: “Ora e labora!”. Afinal, o verbo “orar”, muito mais do que significar a mera repetição de um conjunto de fórmulas, remete à vida inteira em espírito de oração, ou seja, a vida vivida em um ambiente de comunhão com Deus.

“Laborar”, por sua vez, mais do que se referir às atividades cotidianas pelas quais se produz a própria subsistência, significa a fixação da atenção, a produção, o aperfeiçoamento e o cuidado de si.

Nesse quadro, o estudo (das Escrituras, da filosofia, da teologia, das ciências etc.) pode ser considerado tanto oração como labor, pois a atividade intelectual, vivida de maneira integrada à vida afetiva, revela-se, para o ser humano, uma forma de autoprodução e de relação com Deus. Esses três elementos comporiam, assim, a “vida espiritual”, ou seja, a vida vivida no Espírito, a qual, enraizada na dimensão físico-corporal, amplia o sentido da existência humana e a centra na busca de Deus.

O mosteiro como universo

Um mosteiro beneditino, para permitir que seus monges vivam no Espírito, constitui-se num universo completo, no sentido próprio do que, desde a Idade Média, chama-se de universum, isto é, uma totalidade, um lugar onde todas as três funções sejam possíveis: a oração, o labor e o estudo. Nesse sentido, o mosteiro refletiria a unidade do cosmo, pois, na concepção cristã, a finalidade do universo é revelar o Espírito que o criou.

O mosteiro seria, portanto, um microcosmo que reflete o macrocosmo, e cada monge (monachus ou “um”, em latim), por sua vez, seria, em si mesmo, um microcosmo que reflete o cosmo monástico e o macrocosmo criado pelo Espírito. Aliás, o monge, como todo ser humano, tem a vocação de realizar-se pela produção e cuidado de si, em comunhão com Deus. Segundo São Bento, se o monge empenha-se na vida espiritual, encontrará a paz: vida plena, felicidade.

Para quem visita o Mosteiro de São Bento da Bahia é visível a estrutura de um universo. Para orar, os monges contam, além da meditação constante, com as horas de ofício religioso comunitário, celebradas inclusive com o canto gregoriano, seja na bela basílica de São Sebastião, seja na “sala do Capítulo” (uma sala de reunião e oração reservada à comunidade monástica), seja em suas “celas” (seus quartos ou cellae, em latim), seja, ainda, em seus belos jardins e capelas particulares.

Para trabalhar, os monges possuem uma gama variada de possibilidades: o Colégio de São Bento, a Faculdade de São Bento (com cursos de Filosofia e Teologia), a manutenção dos espaços monásticos, as diferentes oficinas (entre as quais se destaca a tipografia, que foi a primeira do Estado da Bahia; o sofisticado ateliê de restauração de livros antigos, o mais antigo e um dos mais importantes do Brasil; a atividade universitária fora do mosteiro, executada por alguns monges), etc.

Quanto ao estudo, ele permeia tanto a oração (com a meditação dos textos da tradição cristã, por exemplo) quanto o trabalho (com traduções, estudo pessoal, aulas, entre outras atividades). Para o estudo, os monges contam com vários espaços, entre eles a biblioteca do mosteiro, uma das maiores e melhores do Brasil, com um importante acervo de obras raras, aberta ao público.

Esse breve resumo não faz justiça à riqueza do mosteiro; riqueza em todos os sentidos. Afinal, não basta falar, por exemplo, de “acervo de obras raras” quando se encontram, nesse acervo, incunábulos (obras anteriores ao aperfeiçoamento da imprensa) e obras que vêm desde o século 16, além de obras autógrafas, como as de Jorge Amado, entre outras.

Também não bastaria falar, ainda, das obras de arte do mosteiro, pois sua coleção é simplesmente fora do comum para o contexto latino-americano, contendo desde obras de arte sacra produzidas no século 16 até o trabalho de artistas contemporâneos como Carybé (Hector Barnabé Carybé, Argentina/1911 – Salvador/1997), Sante Scaldaferri (Salvador/1928) e Iberê Camargo (Iberê Bassani de Camargo, Restinga Seca/1914 – Porto Alegre/1994). O mosteiro é o mantenedor do Museu de Arte Sacra, que está em fase final de reforma e será reaberto ao público em 2012.

Para apresentar seu universo (com seus variados acervos), o Mosteiro de São Bento da Bahia acaba de publicar a obra O Mosteiro de São Bento da Bahia, organizada por Dom Gregório Paixão, monge desse mosteiro e bispo auxiliar da Arquidiocese de Salvador.

Foi a forma encontrada pela comunidade monástica para celebrar os 430 anos de fundação e apresentar àqueles que não podem frequentar seus espaços a vida espiritual aí vivida. Trata-se de um belo livro- álbum de 404 páginas, repleto de fotografias e acompanhado do CD Inspirações do claustro, com o canto gregoriano dos monges do próprio mosteiro.

No livro, encontra-se uma exposição da história da ordem beneditina, assinada por Dom Gregório Paixão, monge, bispo, teólogo e antropólogo; uma exposição da história dos beneditinos na Bahia, escrita por Francisco Senna, arquiteto e docente da UFBA; um estudo do legado arquitetural beneditino e da construção do mosteiro, de autoria de Maria Herminia Oliveira Hernández, arquiteta e doutora em conservação e restauração pela UFBA; uma apresentação dos acervos culturais do mosteiro, assinada por José Dirson Argolo, especialista em restauração e docente da UFBA; uma apresentação do acervo bibliográfico e documental do mosteiro, assinada por Alícia Duhá Lose, coordenadora geral da Faculdade de São Bento, doutora em letras e linguística pela UFBA, onde também é docente; uma crônica da vida monástica, escrita por Fernando da Rocha Peres, poeta e docente da UFBA.

Abertura de portas e mentes

No último dia 30, o mosteiro, excepcionalmente, abriu as portas de seu claustro e de partes de sua clausura para receber os convidados ao lançamento desse livro-álbum. Na história do mosteiro, essa foi a terceira vez em que as portas da clausura foram abertas (pois, de acordo com a tradição monástica, apenas os monges devem ter acesso a ela): durante a invasão holandesa; durante a abertura das portas do mosteiro aos estudantes que aí procuraram refúgio da perseguição militar (decisão do ilustre abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio, que protegeu mais de cem estudantes dentro dos muros da clausura e enfrentou pessoalmente as tropas militares); durante a noite de 30 de novembro, quando os monges, sob o olhar paterno do atual abade, Dom Emanuel d’Able do Amaral, receberam mais de mil convidados ao lançamento do livro comemorativo dos 430 anos do mosteiro.

Não se conta, entre essas vezes, o período em que o mosteiro se transformou em enfermaria, durante a Guerra de Canudos.

Tais aberturas físicas simbolizam fortemente a abertura do Mosteiro de São Bento da Bahia ao seu tempo histórico. Apesar das inevitáveis dificuldades que toda instituição deve enfrentar, a comunidade monástica de Salvador sempre se mostrou ligada a seu contexto, em busca de formas cristãs de conexão com os acontecimentos e inserção no mundo.

Nesse sentido, um visitante não deve estranhar ao ver, hoje, nos cantos do mosteiro, antenas de sistema WiFi e ao saber que cada monge possui seu lap top. Também não deve admirar se souber que o acervo raro da biblioteca está em plena fase de digitalização ou se constatar os inúmeros projetos de pesquisa da Faculdade de São Bento subvencionados por agências como CNPq, Capes e Fapesb.

Sinais de modernidade, mas também de qualidade e rigor nos estudos desenvolvidos no contexto monástico soteropolitano, em pleno século 21.

Outro sinal de abertura de espírito da comunidade monástica é a convivência fraterna com as religiões americano-africanas. Sem abrir mão de sua identidade cristã e sem cair em sincretismos fáceis, os monges mantêm um diálogo fundado na busca de Deus, característica do ser humano.

Um exemplo – como se pode ler na obra recém-publicada – é o fato de os beneditinos, sob a condução do abade Dom Timóteo, terem celebrado pela primeira vez em sua abadia as exéquias de uma ialorixá da religião nagô, a sacerdotisa Bibiana Maria do Espírito Santo, fazendo exceção à tradição negra da Bahia, segundo a qual os sacerdotes do candomblé tinham suas exéquias celebradas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Baixada dos Sapateiros, ou na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Barroquinha (hoje inexistente).

É somente tendo em vista esse diálogo fundamentado na busca de Deus que se pode compreender como a comunidade monástica, na festa de lançamento do livro-álbum, no dia 30 de novembro, pôde instalar, em pleno claustro, um espaço para a preparação de acarajé, feita por baianas paramentadas segundo o costume afro-brasileiro.

Em outro sentido, também se entende o teor profundo da amizade estabelecida, nos inícios do século 20, com o senhor Emílio Odebrecht e seu filho, Norberto Odebrecht, pois, vivendo em épocas difíceis, os monges beneficiaram-se do trabalho do senhor Emílio na restauração da Basílica de São Sebastião (igreja abacial), o qual substituiu o teto da nave por uma estrutura de concreto armado, em iniciativa pioneira na história da arquitetura no Brasil.

Mas essa novidade técnica não foi o maior sinal de abertura de mentalidade, e, sim, o fato de que o senhor Emílio provinha de uma família luterana praticante.

Em um contexto anterior aos movimentos de aggiornamento trazidos pelo Concílio Vaticano II, e sobretudo de passagem do século 19 ao 20, um diálogo e uma relação desse tipo testemunham uma mentalidade realmente avançada. Tão avançada quanto fatos mais impactantes, como a luta contra a ditadura ou a abolição dos escravos, na circunscrição do mosteiro, trinta anos antes do ato oficial da Princesa Isabel.

Esse espírito aberto ao momento histórico e ao diálogo com a cultura circundante não é algo devido simplesmente ao fato de esse mosteiro situar-se no coração da cidade  de São Salvador da Bahia. Dizer isso seria pouco, embora o calor físico e humano possam contribuir para entendê-lo. A razão mais profunda e que parece ter estado presente em toda a história da comunidade beneditina soteropolitana deve ser buscada na vocação cristã ao diálogo e à fecundação da cultura com os valores do humanismo e da busca de Deus.

Juvenal Savian Filho é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp.

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