O paradoxo do silêncio em ‘Aurora de cedro’, de Tito Leite

O paradoxo do silêncio em ‘Aurora de cedro’, de Tito Leite
O monge beneditino Tito Leite, autor de 'Aurora de cedro' (Foto: Divulgação)

 

No novo livro de poemas do monge beneditino Tito Leite, Aurora de cedro (7Letras, 2019), nos deparamos com o silêncio da linguagem metafórica que nos leva a um não-lugar, a um desconhecimento de tudo por suas analogias que quebram com a lógica binária e estruturalista. Rompendo com uma alma poética aparentemente barroca, com suas oposições entre carne e espírito, o poeta aqui em questão hibridiza polaridades, nos fazendo lembrar da “música calada”, de um San Juan de la Cruz, que unia elementos díspares num mesmo sopro de vida, criando a unidade em meio á multiplicidade. Retomando uma voz lírica de Manoel de Barros com seus encantos dos pássaros que não poderiam ser medidos pela lógica racional, a linguagem literária de Tito Leite é composta pela junção entre o corpus linguístico e a temática de cunho social, revelando uma realidade plena e cortante. O monge não vive na reclusão de um mosteiro, mas salta os olhos adiante para o real circundante, mostrando seus problemas e impasses na contemporaneidade.

Dividido entre a temática do sagrado e o campo do sociológico, Tito Leite consegue unir estes elementos opostos num amalgama metafórico exemplar. Como disse, André Luiz Pinto, no seu belíssimo prefácio sobre o poeta por ora aqui apresentado: “O que é uma metáfora? Qual a sua natureza? É a pergunta que me faço ao ler Aurora de cedro, o novo livro de poemas de Cícero Leilton Leite, o poeta e monge beneditino Tito Leite, depois do excelente Digitais do caos, de 2016.” A metáfora se esconde nas entrelinhas de Deus, no Deus absconditus, que oculta sua face dos pecados dos homens: “É um abrir as portas/da morada de Deus/e no íntimo do seu/ínfimo não entrar.” Como no poema “Monte Carmelo”, de San Juan de la Cruz, para se chegar a Deus são necessários o desprendimento e o despojamento, algo que nos falta, devido a nossa carne pecadora traduzida na origem, nos seres originários do Paraíso. Em “Misereri Nobis”, encontramos a temática social que se mescla nas linhas fiáveis do sagrado poético: “A resistência/ é um gato branco/ numa noite/de blecaute/ Muitos pastores/ um só holocausto:/ Deus nos salve/ de Deus”. Após a expulsão dos primeiros seres do Paraíso, que tinham a totalidade da natureza, resta aos seres expulsos o mundo do trabalho, do suor e das lágrimas, o universo em sociedade com suas prisões, injustiças e medos: “Adão, tu ganhas/o pão com o suor/da tua tarde,/mas muitos dos teus/filhos comem/a nossa carne”. Esses componentes inusitados, unindo o sagrado, o poético e o social, ganham peso em sua poesia que mescla o perene ao imanente e transitório.

Apesar de sermos medidos e catalogados em nossa convivência social a partir de um tom taxonômico e hierárquico, Deus não pode ser medido, assim como a natureza plena que nos circunda. Essa imensurabilidade está presente a partir dos versos do místico Angelus Silesius: “Deus se funda sem sonda, sem medida se mede! Quem com Ele se une, isto percebe”. E Manoel de Barros completa a partir de sua bela poesia: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá/ mas não pode medir seus encantos/ A ciência não pode calcular quantos cavalos de força/ existem/nos cantos de um sabiá.” A poesia de Tito Leite não pode ser julgada por olhos simplórios. Sua poesia ultrapassa o usual, o trivial, para se fazer sublime e eterna, algo que não pode ser calculado pela ciência exata. Sua poesia produz o desconcerto e a junção entre pares inconciliáveis, sem desdizer a aurora dos tempos atuais. É um trabalho riquíssimo no campo da literatura através de suas imagens impactantes e originais. Os olhos de Tito Leite observam a aurora de cedro das manhãs não contaminadas pelo lodo da exatidão matemática. Sua poesia é paradoxal a partir do silêncio das metáforas que traduzem o que os olhos não veem.

A própria expressão do título do livro é de uma beleza metafórica ímpar. Vejamos o que nos dizem os grandes dicionaristas Jean Chevalier e Alain Gheerbrant sobre as palavras “aurora” e “cedro” no Dicionário de símbolos: a aurora para eles, é “símbolo de todas as possibilidades, signo de todas as promessas” e o cedro, “assim como todas as coníferas, é consequentemente um símbolo da imortalidade”. Dessa forma, unindo todos os dois elementos, temos o encontro das águas incorruptíveis da alma, a essência do ser em toda a sua grandeza e eternidade. O impossível, que ultrapassa a lógica, é o conviver de nossa originalidade e criatividade que surge com os primeiros rompantes do dia. A claridade é luz que ilumina o pensar e o sentir. A poesia de Tito Leite é feita de iluminuras, do tecer das manhãs mais belas a partir do rejuvenescer e ressignificar das metáforas mais ricas. O reino das possibilidades poéticas na sua escrita é um jorro que anima o desejo pela imortalidade das palavras que se eternizam pelos versos plenos e libertos das amarras do que é estrutural e massacrante. Sua poesia é feita de claridades e mistérios que tecem as auroras mais belas dos destinos dos homens que são perfumadas pelos cedros da terra. O que é transcendente se recolhe na imensidão da paz original e se enraíza no terreno a partir do imanente. O imensurável da aurora é um terreno de possibilidades de novas auroras que são queimadas pela árvore da matéria. Alma e corpo se unem num mesmo dedilhar de segredos.

Em Comunicação em prosa moderna, singular livro de Othon M. Garcia, este diz sobre o verbete “metáfora”: “Em síntese – didática -, pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A”. É recorrente na poesia de Tito Leite a utilização das metáforas mais ricas e originais, mapeando uma floresta de símbolos que percorrem os labirintos inusitados da literariedade. Sua poesia é plena na sua convivência implícita com as palavras energizadas pelo poético no seu tom mais alto e dinâmico. Mas suas metáforas não vivem em castelos sublimes de cristal, longe dos sussurros e gritos do real. Suas imagens se inundam na esperança de uma sociedade mais justa.

A revolução dos seus versos produz o retorno da poesia à sua função engajada e libertária a socorrer os pequenos, os proscritos, os malditos e os refugiados, o gesto maior de Jesus Cristo frente aos desvalidos na sua cultura circundante. O hábito do monge se comove com os apelos do mundo que o cerca, produzindo uma poesia diferente, ao unir o sagrado, o literário e o social, como recursos que se enriquecem e se catalisam pelo poder da metáfora e sua força em mover o silêncio das montanhas mais distantes para trazê-lo para perto de nós, a partir de sua escuta de nossos irmãos menores que poderiam naufragar nos novelos do delírio, mas que pela dinamicidade de sua poesia, podem alcançar a “aurora de cedro” das possibilidades e da eternidade: “Não é a lua/ que sangra/ são os pés/dos retirantes”. Fugindo de um lugar distante e inalcançável, sua poesia alcança o acorde dos sentidos mais plenos e mágicos, possibilitando a doação de toda a humanidade. Tito Leite não nos desfamiliariza, ele produz um processo de familiarização com o real através do dom da caridade e da solidariedade: “O que é/ distante nos é semelhante”. A mistura entre o peso do social e a leveza de seu lirismo faz de sua poética algo ambivalente em sua força poética: “Fazendo das dúvidas/ que ardem/ uma begônia”. Tito Leite busca o sentido a todo custo. Como explicar o mundo em que vivemos pelas palavras, fugindo do ostracismo do zero? “Enquanto isso, no gume da estrela/ high-tech,/ há poetas que fogem do dígito 0.” Saindo do nonsense e da ilogicidade, sua poesia também não se espelha numa lógica dual, é feita de luz e sombra, memória e esquecimento, reunindo num só canto de pássaros a verve criativa da poesia verdadeira que flerta com os ditames de uma fala originária, anterior a toda caoticidade. A verdade de Tito Leite é oceânica, não pode ser medida pela razão humana, suas ideias são livres como os cantos dos pássaros, suas verdades não são digitáveis, mas imensuráveis e grandiosas como os oceanos das ideias. Portanto, sua poesia recolhe no seu claustro o silêncio paradoxal das metáforas, unindo o grito dos silenciados à linguagem silenciosa de seus cantos e encantos sagrados.

Alexandra Vieira de Almeida  é escritora e doutora em Literatura Comparada pela UERJ

Aurora de cedro
Tito Leite
7Letras
88 páginas – R$ 38

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