Atores
(Ilustração: @photo.jaksys)
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Não posso reclamar. Mamãe sempre quis que eu fosse bom e me incentivou a participar de coisas boas. Garanto que ela nunca imaginou que eu as usaria para o mal. Havia um grupinho de teatro na igreja do qual fui convidado a participar. Nunca gostei e jamais levei jeito para a coisa, mas, algumas vezes, marquei presença lá. Certa ocasião, vi uma garotinha encenando estar morta. É certo que durante o ato de morrer ela mantinha uma cara de riso incontido que contagiava a todos, mas, ainda assim, achei interessante a performance.
Algum tempo depois, estávamos eu e meu irmão aprontando alguma em casa. Se não me falha a memória, ele foi flagrado pelo nosso pai tentando (e conseguindo!) parar a hélice do ventilador com a língua. Sim, isso mesmo. O ventilador era de plástico, mas, por favor, não tentem fazer isso em casa, sobretudo quando houver um pai por perto.
A parte dianteira do aparelho estava quebrada, e ele começou ligando o ventilador e colocando o dedo indicador rapidamente entre as hélices para travá-las. Obteve êxito e quis alçar voos maiores. Já conseguia parar com todos os dedos, depois evoluiu para os cotovelos e até para a testa. Pegou prática, aumentou a velocidade e quis ousar cada vez mais. Ligou na velocidade mínima e espichou a linguona na hélice, quando papai chegou.
Foi engraçado ver a cara dele com o queixo apoiado na mesa e a língua de fora, olhando aterrorizado para a porta que acabara de abrir. Às vezes, uma cena diz mais do que mil palavras, e naquele dia falou. Meu pai não quis entender que meu irmão estava evoluindo em suas empreitadas circenses, e o coro comeu. O que restou do ventilador foi quebrado. Apanhamos de verdade, ficando ambos doloridos. Ainda bem que foi rápido porque, como tinha que voltar para a oficina, meu pai foi direto ao ponto. Instantes depois, lá estávamos eu e meu irmão sozinhos, tendo somente por companhia as marcas da cinta.
Na hora da surra, até simulei um choro – sempre fazia isso para tentar atenuar o castigo – mas, sei lá por que, fiquei igual à menina que morria sorrindo, e, mal passando o calor das cintadas, estava rindo feito um pateta. Meu irmão, sim, chorava de verdade porque apanhou bem mais e achou que eu estava rindo dele por esse motivo. Ele estava indignado por não ter recebido um elogio, um firme incentivo à sua criatividade e destreza. Sentia-se um artista incompreendido em seu próprio lar e começou a reclamar da vida.
Entre um protesto e outro, foi tomar um copo de groselha guardada na geladeira e acabou derrubando um pouco na camiseta quase branca, que se tingiu de rubro no mesmo instante, causando ainda mais medo das represálias, agora por parte de mamãe, que estava perto de chegar. Não sei qual foi a inspiração cênica que ele teve dessa vez. Só sei que me contagiou, e, instantes depois, estávamos os dois brincando “de acidente”: enquanto um se retorcia no chão fazendo caras e bocas, urros e gemidos, o outro fabricava horríveis ferimentos no corpo jogando groselha misturada com farinha para fixar melhor. Com certeza causaríamos inveja a muitos maquiadores de Hollywood, caso nos vissem. Minha mãe, que viu, que o diga.
Começou com um pequeno simulacro de corte no braço, seguido de uma fratura exposta na barriga. Na época não tínhamos conhecimento de que tecnicamente não há fraturas expostas na barriga, mas assim foi chamada a gigantesca obra de arte que eu fazia na vítima que estava deitada no chão após ser atropelada por um trem. Também tenho meus arroubos de inventividade e já estava abrindo o congelador para cortar carne crua e tornar mais reais as feridas no meu irmão quando mamãe chegou.
Não foi engraçado ver a cara dela olhando para um filho que gemia todo ensanguentado no chão, enquanto outro segurava uma faca e um pedaço de carne com a geladeira aberta. Juro que não foi. Depois disso, tudo foi rápido. Tanto o grito quanto o desmaio. Cai o pano. A cena seguinte mostra dois desesperados irmãos de 6 e 9 anos, respectivamente, batendo todos os recordes mundiais de limpeza de casa e de eliminação de provas, enquanto mamãe delirava no sofá. Não houve mais encenação; cada um cumpriu seu papel magistralmente. Mesmo se tivesse me dado vontade de rir não conseguiria. A surra foi grande e até hoje quando vejo groselha me lembro da arte do teatro.
Por Ronaldo Ferreira