Atef Abu Saif: “Vamos lutar porque nos recusamos a sumir”

Atef Abu Saif: “Vamos lutar porque nos recusamos a sumir”
divulgação

 

No dia 7 de outubro de 2023, tinha início uma violenta incursão militar israelense sobre a Faixa de Gaza. Como recorda o escritor palestino Atef Abu Saif nas primeiras páginas de Quero estar acordado quando morrer (Elefante, 2024), era uma manhã fresca e calma de sábado e ele estava nadando com seu filho, seu irmão e seu cunhado quando os bombardeios começaram.

A guerra, que já dura um ano, vitimou até agora mais de 42 mil habitantes palestinos da Faixa de Gaza. A pequena extensão de terra com cerca de 360 km² costuma ser descrita como uma prisão a céu aberto em razão das condições em que vivem seus habitantes sob a ocupação israelense, que ocorre desde 1948, período conhecido como “Nakba”.

Para o autor, o ato de escrever é uma recusa ao apagamento e à desumanização que estão em curso. A atual guerra, afirma Atef, é “um dos muitos crimes de Israel contra os palestinos” e parte de um empreendimento colonial: “se o dever dos criminosos e dos colonizadores é impedir que o futuro chegue, temos o dever de lutar pelo futuro. Se não acreditarmos nele, não viveremos o hoje.”

Em entrevista à Cult, Atef Abu Saif fala sobre a situação atual na Faixa de Gaza, a posição da comunidade internacional diante da guerra na Palestina e o papel da literatura diante do horror.

 

Você tem acompanhado as discussões no mundo globalizado acerca da guerra em Gaza? O que lhe chama a atenção nos posicionamentos adotados?

Infelizmente, o mundo continua mais ou menos em silêncio sobre o que tem acontecido em Gaza. Isso diz muito para nós, como palestinos. Mesmo que o mundo continue a intervir para parar essa guerra, ninguém pode forçar Israel a cessar os bombardeios. Claro que temos acompanhado as campanhas de solidariedade em capitais de diversos países e estamos felizes com isso, pois precisamos que as pessoas ouçam sobre nós e queremos que as pessoas ajam, mas as posições de muitos dos países europeus – dos países dominantes – são decepcionantes porque nenhum deles foi capaz de parar Netanyahu. Em vez disso, vemos ele expandir a guerra para outros países.

A discussão toda em torno da guerra nos mostra que se você continuar em silêncio, se você não agir, você se torna parte dela. E muitos dos países europeus são parte dessa guerra porque eles abastecem Israel com armas e com proteção diplomática através do poder de veto no Conselho de Segurança.

Tudo isso é muito decepcionante. Ver a continuidade dessa guerra um ano após o seu começo diz muito sobre a ineficiência da comunidade internacional e a insignificância do direito internacional em nossas vidas, porque ele se aplica a pouquíssimas pessoas no mundo. Não vale para nós, pessoas comuns.

 

Como combater o mito sionista de que o território da Palestina estava desocupado antes da colonização israelense?

Uma das grandes mentiras da história é o lema sionista: “Uma terra sem povo para um povo sem terra.” Se isso é verdade, então como na Palestina, antes da Nakba — antes dos Estados Unidos e do Reino Unido fundarem Israel —, apenas em Jafa [região onde hoje se localiza Tel Aviv] tínhamos dezessete cinemas? Na Palestina toda, tínhamos duas estações de rádio e setenta e cinco jornais em circulação antes de 1948, o ano da Nakba. Isso é um grande número mesmo para alguns países europeus.

Mesmo a Bíblia nos mostra que a Palestina nunca foi uma terra desabitada quando Abraão viajou do Iraque para Canaã, onde os habitantes da atual Palestina lhe deram um lugar para enterrar sua esposa. Toda a história da região prova que a narrativa sionista é um mito. As primeiras civilizações nasceram lá. É de lá que as três maiores religiões da atualidade vieram.

Esse processo de apagamento foi o que os Estados Unidos fizeram com a América quando eles exterminaram todos os povos indígenas que lá habitavam. Podemos pensar que esse é o motivo dos Estados Unidos serem simpáticos a esse projeto. É o mesmo projeto colonial. Eles querem eliminar todos nós. Toda a propaganda do movimento sionista é baseada nessa mentira, que foi vendida ao continente europeu. E eles acreditaram nela.

O que se sucedeu a esse processo de colonização foram os massacres e banhos de sangue que conhecemos, mas não se pode falar nada sobre isso porque se você cria um demônio não há como pará-lo.

Nunca tivemos problema em viver todos juntos, judeus, muçulmanos e cristãos, na Palestina. Os judeus sempre viveram pacificamente em todo o Oriente Médio. No Iraque, no Egito, no Iêmen, na Líbia, no Marrocos, porque eles são árabes em países árabes. Mas Israel não é um Estado judeu. É um Estado sionista fundado pelo poder colonial do Reino Unido, dos Estados Unidos e da França com o objetivo de manter essa região sob controle.

Por isso os países dominantes protegem Israel, o único país no mundo criado por uma resolução das Nações Unidas. O único país do mundo que nunca aplicou ou aderiu a qualquer resolução da mesma organização.

Se qualquer país do mundo ousar descumprir qualquer decisão internacional, como Israel faz, os Estados Unidos arrumariam um pretexto para invadir esse país com a desculpa de estarem protegendo o Direito Internacional ou os Direitos Humanos.

 

Como você acha que a incursão militar de Israel sobre a Faixa de Gaza será lembrada no futuro?

Como um genocídio. Precisamos afirmar isso. Israel está tentando matar quantos de nós eles conseguirem. Quando Israel impede o acesso a comida, remédios e água em determinadas regiões, de modo que os palestinos morram de desnutrição e doenças, é muito claro que a intenção deles é matar. O que está acontecendo em Gaza hoje é um dos muitos crimes de Israel contra os palestinos.

Registramos também a morte de 174 jornalistas em apenas um ano de guerra. Isso é quase um jornalista morto a cada dois dias. Mesmo na Segunda Guerra Mundial não chegamos a ver o assassinato de jornalistas nessas proporções.

 

Por que você decidiu permanecer em Gaza desde o início da guerra?

A atual guerra não é, de forma alguma, a primeira guerra à qual sobrevivo. Decidi ficar porque lá é a minha terra. É a essa terra que pertenço. Mesmo tendo a oportunidade de deixar Gaza no primeiro dia, decidi ficar pois minha família estava lá. Meus irmãos e meu pai, que morreu mais tarde.

Creio que a salvação não é individual. Não é possível salvar a si mesmo sozinho. Eu tive de sair de Gaza mais tarde, após três meses, pois naquela época era ministro da cultura [da Autoridade Nacional Palestina], e, portanto, tinha muitos compromissos ministeriais e reuniões. Eu saí de Gaza quando eu tive de sair.

 

Como é ser um pai durante a guerra?

É uma missão difícil. Você tem que proteger seu filho e cuidar dele. Ele espera que você possa protegê-lo, mas, na verdade, você não pode. Psicologicamente, é muito desgastante; machuca muito, porque na guerra qualquer coisa pode acontecer. Ao mesmo tempo que você está preocupado enquanto pai, você precisa encontrar comida, água e um lugar seguro para se abrigar. E não há lugar seguro. Essa é a missão mais difícil.

Tomar conta de uma outra pessoa durante a guerra é terrível, mas você tem de fazê-lo porque não há outra escolha. Foi uma das coisas mais difíceis que tive de enfrentar nesse mundo depois de tentar manter a mim mesmo longe da morte.

 

Você vê um futuro possível para a Palestina?

Claro. O futuro sempre se impõe. Se o dever dos criminosos e dos colonizadores é impedir que o futuro chegue, temos o dever de lutar pelo nosso futuro. Se não acreditarmos no futuro, não viveremos o hoje.

A minha crença no futuro me torna imune ao assassinato, à destruição e à brutalidade do mundo ao meu redor. A população da Palestina resistiu a 76 anos de ocupação israelense, além de muitas outras ocupações ao longo dos últimos 100 anos. Mas essa é nossa terra; não vamos sair de lá e vamos lutar porque nos recusamos a sumir.

Nós classificamos equivocadamente o que está acontecendo agora como uma nova guerra. Israel nunca deixou de estar em guerra contra os palestinos. Isso ocorre desde que Israel foi fundado. Gaza é um território isolado por Israel há 17 anos. 85% de sua população nunca deixou a Faixa. Eles não sabem como é o mundo do lado de fora. Isso é parte de uma guerra continuada contra o povo palestino, mas podemos ver isso melhor através da internet e das redes sociais. Por isso, sabemos mais dos detalhes.

O próximo passo para Netanyahu depois da guerra é outra guerra. O objetivo desta guerra é a guerra em si mesma.

 

Como manter a dignidade diante da calamidade? Acha que a cultura pode se contrapor à desumanização?

Um dos objetivos dessa guerra é nos desumanizar. E é preciso lutar todos os dias para manter a humanidade. Uma das lições mais importantes que a guerra nos ensina é apreciar a vida. Ela te faz inventar modos e mecanismos para sobreviver. Se você perde a sua humanidade, então você existe como uma criatura ou algo no vazio apenas para deixar de existir. Mas não estamos vivendo no vácuo. Nós temos memórias, amigos, famílias. E mesmo agora há pessoas em Gaza se casando, fazendo celebrações e cumprindo seus rituais religiosos com danças e cantos. A vida tem de continuar. A cultura pode contribuir enormemente para isso, através das palavras dos poetas, romancistas, novelistas, através da música e da dança.

É através da cultura que lembramos a nós mesmos que somos humanos. Lembro-me de um garoto em uma barraca vendendo livros em Gaza. As pessoas podiam não ter dinheiro para se alimentar, mas tinham dinheiro para comprar um livro para ler. Apesar de tudo.

 

Segundo Adorno, “escrever poesia após Auschwitz é um ato bárbaro”. É possível escrever em meio ao horror?

Não acho bárbaro escrever poesia durante a guerra. É preciso escrever sempre, esse é o dever do escritor. Ele não luta fisicamente, mas luta com as palavras, escreve sobre as pessoas. Se você não escreve sobre algo, ninguém sabe sobre a existência daquela coisa.

Hoje a cidade de Gaza está destruída. O que resta desse lugar é o que autores como eu escreveram; o que jornalistas registraram; o que cineastas filmaram. Agora que o lugar se foi, podemos nos lembrar da cidade de Gaza pela arte. Creio que todos temos uma missão no mundo. Não nascemos com essa missão; escolhemos como agir. Eu decidi ser escritor porque me fascinei pelas histórias das pessoas ao meu redor no campo de refugiados onde cresci. Quando a guerra começou quis escrever sobre mim e sobre os outros porque creio que essas são histórias que precisam ser ouvidas.

 

Você escreveu em 2014 um outro diário da guerra na Palestina, intitulado The drone eats with me (ainda sem publicação no Brasil). O que mudou desde então?

Acho que o que muda são apenas detalhes. Acho que apenas o fato de eu ter escrito dois diários sobre a guerra diz muito sobre a situação em Gaza. A guerra não acaba porque não há ninguém interessado em forçar Israel a se manter dentro da lei, não acima dela. Por isso, temo que no futuro estaremos falando sobre outra guerra se a paz não for imposta com força na região.

 

Você pensa que relatos da guerra como o seu podem causar algum impacto sobre a realidade do genocídio?

Como eu disse, a literatura e a cultura têm um papel a cumprir. Muitas dessas histórias não foram contadas por jornalistas porque são de caráter pessoal e porque estão relacionadas às vidas do meu entorno do jeito que elas aconteciam. Creio que essas histórias são testemunhos por enquanto, mas, daqui 100 anos, as pessoas podem as ver como documentos, como a literatura no geral é um documento histórico.

Hoje, sabemos coisas sobre a Rússia do século 19 através da literatura de Dostoiévski; da França do século 18 e 19 através de Baudelaire, Flaubert, Balzac; da Inglaterra através de Charles Dickens e outros. Escrever literatura é uma forma de documentar. Eu apenas quis escrever porque, se eu morrer, as pessoas podem ler o que escrevi.

 

A literatura é uma atividade otimista; é possível ser otimista em meio à guerra?

Que opções você tem? morrer, render-se? O maior objetivo da guerra é te matar. Na guerra, você está continuamente morto até que prove o contrário. Você tem de fazer isso procurando constantemente pela sobrevivência. Não é uma metáfora quando digo que na guerra você sente o cheiro da morte, você a vê e a sente por perto pronta para agarrar alguém que cai ao seu lado. Quando alguém morre perto de você quer dizer que a morte estava pronta para te pegar, mas por um engano você sobreviveu.

Ser otimista é uma necessidade. Você aprende a apreciar a vida. A vida não é dada a você; você precisa agarrá-la. Você tem que recuperá-la porque foi roubada de você.

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