ASAS – conto
Meu conto Asas saiu no blog de minha querida Rafaela Figueiredo e suas amigas: http://bordelbordado.blogspot.com.br/
Reproduzo aqui com pontuação um pouco diferente.
Cigarro aceso é tempo para pensar. Coisa que não deixo que me roubem no meio desse caminho de palavras espalhadas pelo chão. Na bolsa, espaço para estrelas sem destino. Já me roubaram tudo, a ampulheta que controla o futuro, meu corpo, cílios postiços, meus olhos piscando. Sigo de salto alto no pé direito, descalço é o esquerdo. Me doem as costas, as coxas, a unha. Um soco rasgou-me a maçã, sujando de sangue a blusa de malha. Ficou a segunda pele mais fácil de lavar. Meus seios ardem como queimados. Deve ter sido o susto. Às vezes, chegam exigindo dinheiro. Nunca é o sexo, cujo perigo eles conhecem. Esta noite, só o que queriam era olhar-me sem olhos.
O que me dói, no entanto, é a falta de Agnes.
Agnes era a solidão que me faltava. Uma conquista verdadeira, como disse a ela quando nosso guarda-chuva foi devorado pelo vento e pude tocar em seus braços miúdos, as costas tesas, aqueles cabelos de luz. Eu a esperava na saída da fábrica no fim da madrugada, acompanhava-a pela rua, carregávamos juntas os dias, as noites, todos os segredos. De sua língua, surgia ora um gosto, ora um desgosto. Eu só escutava.
Agnes dizia que meus pensamentos vinham de nuvens contadas. Me pedia um dinheiro qualquer para comprar pão, falando dos filhos, do marido, do pai doente. O salário não dava para o mínimo. Eu acudia com meu pouco, que era muito pouco, menos, coisa nenhuma. Ela agradecia escondendo o que sabia. Não ficava bem andar ao meu lado.
Perguntou-me uma única vez se eu fazia programa. Eu só faço tricô, menti. E essa voz tão forte, e essa barba que cresce, e esses pés enormes? Sentia-me a vovó da Chapeuzinho explicando-lhe que meu corpo era todo, era inteiro, um casal completo a ocupar um mesmo lugar no espaço. Pedia-me que eu mostrasse, mas eu tinha vergonha de ficar nu diante daquela falta de maldade. Uma dia ela veria apenas as asas, dizia, prometendo o mundo. Ela silenciava tentando ouvir o som dos pássaros a despertar a cidade. Andava comigo até o portão e seguia uns cinquenta metros adiante, desaparecendo na entrada do arvoredo.
Esperei na porta da fábrica por dias. Ela nunca mais apareceu. Roubaram-me um pouco a cada dia, o que eu tinha e o que não tinha. Me roubaram também Agnes. Me pergunto o que farei agora, quando as margens dessa rua se tornam tão estreitas. Tive a ideia de subir no morro. Voarei para bem longe. Agnes verá as asas. Saberá, como eu sei, que tudo vai ficar bem.