As razões de Werther
O papel da sensibilidade na formação da individualidade
Magali Moura
“Mau seria se cada um não tivesse em sua vida uma época em que Werther lhe parecesse como escrito especialmente para si.”
Goethe
Primavera de 1772. Goethe, advogado recém-formado, chega a Wetzlar para estagiar e conhece em um baile Charlotte (Lotte) Buff, noiva de Christian Kestner. Apaixona-se pela moça e se torna amigo do casal, chegando a lhes comprar o anel de noivado. Suas inclinações não são correspondidas e retorna abruptamente para Frankfurt. Setembro: em sua viagem de volta, hospeda-se na casa de uma amiga de sua mãe, Sophie de la Roche que escrevera, em 1771, um romance epistolar A senhorita de Sternheim e lá conhece sua filha Maximiliane. Outubro: troca intensa de correspondência com Lotte e Kestner que o informa do suicídio de seu colega desde os tempos de estudante em Leipzig, Carl Wilhelm Jerusalém. O também jovem jurista, sensível e dotado de talento artístico, sentia-se infeliz por ser não ser reconhecido profissionalmente e também por estar perdidamente apaixonado por uma mulher casada. Após tomar emprestado um par de pistolas de Kestner, põe fim à vida. Janeiro de 1774: Maximiliane, agora casada com um comerciante bem mais velho e infeliz, muda-se para Frankfurt e passa a freqüentar a casa de Goethe que se apaixona pela jovem sem esperanças. Fevereiro de 1774: aos 24 anos de idade, depois de saber do suicídio de Jerusalém e após passar pela sua segunda grande decepção amorosa em um curto intervalo de tempo, Goethe encerra-se em seu quarto em “uma solidão completa” e escreve em menos de quatro semanas, “de modo bastante inconsciente e como um sonâmbulo”, seu maior sucesso de público: Os sofrimentos do jovem Werther. Escreve de um só fôlego, “sem haver antes lançado sobre o papel nenhum plano de conjunto, nem tratado qualquer de suas partes”. Poucos meses depois de terminado, o romance é impresso sem alterações e lançado na Feira do Livro de Leipzig, sendo logo em seguida proibido em várias regiões por “ameaça à moral”.
A gênese da obra pode ser acompanhada através do relato detalhado que Goethe faz em sua obra autobiográfica, Poesia e verdade, na qual informa sobre a estreita relação com o narrado em Werther e os fatos de sua própria vida, além de fornecer dados sobre a repercussão “prodigiosa” no público e catártica em si mesmo: “Como depois de uma confissão geral, eu me sentia de novo na posse de minha liberdade e minha alegria, e com o direito de começar uma nova vida”. Werther é simultaneamente a expressão de seu tempo e a indicação do fim de um ciclo. Em novembro do ano seguinte, Goethe parte para Weimar encerrando uma fase tormentosa: “Estou tão cansado de andar para diante e pra trás! / Para que tanta dor, tanto prazer desfeito?/ Doce paz, / Entra, ai! Entra no meu peito!”. Nessa cidade se tornaria a figura central da literatura alemã e nela viria a falecer em 1832, aos 82 anos de idade.
Mas a sombra de Werther sempre o acompanhara e volta à cena cinqüenta anos depois de vir a público. Por ocasião da edição comemorativa do jubileu de sua obra, como que num ato de resgate da força viril de juventude, Goethe apaixona-se pela jovem adolescente de 16 anos Ulrike von Levetzow e tem seu pedido de casamento recusado. Ao escrever a poesia A Werther, novamente tem a oportunidade de transformar a dor da paixão em uma obra literária: “o que não vivi e o que não me atormentou e comoveu, isto também não poetizei, nem pronunciei”. O senhor septuagenário dialoga com o jovem e eterno apaixonado Werther: “Mais uma vez ousas, sombra tão pranteada / Surgir à luz do dia”.
As sombras e luzes de Werther, o mais valoroso burguês
A publicação de Werther teve uma repercussão inédita. De um só golpe, a Alemanha alcançava um lugar de destaque no âmbito das discussões estético-literárias na Europa. Era a saída do ensimesmamento a que fora relegada pela Reforma luterana que interrompeu seu diálogo mais estreito com as nações mediterrâneas e conseqüentemente com os frutos do Renascimento. Com um verdadeiro furor, as pessoas liam, sozinhas ou em grupos, decoravam trechos e os declamavam, dezenas de críticas surgiam em revistas e jornais, além de ter sido modelo para outros livros e rapidamente traduzido em várias línguas. Mas sua aceitação não era unanimidade, era também motivo de troça pelo seu tom de exaltação apaixonada, do que é exemplo a versão parodística de Friedrich Nicolai: As alegrias do jovem Werther. Apesar dos clamores da Igreja, a “obrinha” de Goethe havia se transformado em moda e culto não só em termos de vestimenta com os rapazes trajando-se à la Werther de calça e colete amarelos com botões de metal e jaqueta azul, como também se faziam peregrinações ao túmulo de Jerusalém. Uma verdadeira febre de Werther (Wertherfieber) alastrou-se pela Europa com vários casos de suicídio inspirados pela obra: a presença sombria de Werther era notada nas pessoas encontradas mortas abraçadas com um exemplar do livro.
A arte influenciava diretamente a vida das pessoas. Invertendo-se a mão, passava-se a imitar a arte. O homem criava afinal um mundo só seu – a literatura não representa o mundo, é algo em si mesma. Nesse sentido, pode-se entender Werther como um metatexto, no qual um livro se constrói em diálogo com outros. Werther é um jovem que forma sua individualidade através da leitura: Homero, Ossian (James Macpherson), Klopstock e Lessing não são mencionados por acaso. Através deles, constrói-se o diálogo intertextual que forma uma nova maneira de ver o mundo: pelos olhos em brasa do coração.
A própria origem obscura do nome do personagem que intitula o romance de Goethe permite que se faça uma associação livre com o significado da palavra que está na raiz do nome. “Wert” em alemão significa valor ou valoroso e a terminação “-er” indica o grau comparativo, o que leva ao entendimento do nome “Werther” como “aquele que é mais valoroso do que”. Essa acepção pode resumir o próprio enredo da obra que vai muito além de uma mera expressão das dores de amor de um apaixonado infeliz: a discussão sobre valores. A procura de um novo fazer literário, mais verdadeiro e expressivo era o lema daqueles jovens que se reuniam para discutir e fazer a nova literatura, que se configurará no movimento denominado de Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), mesmo título da peça de 1776 de um dos integrantes do grupo em torno do jovem Goethe, Maximilian Klinger. A questão central gira em torno dos novos valores que esta geração tenta estabelecer a partir de suas produções literárias, nas quais conceitos como gênio, fantasia, sentimento, amizade, liberdade e natureza ocupam o lugar central.
Em termos de história das idéias, nessa época a Alemanha estava em plena tentativa de inserir-se no contexto da discussão intelectual européia centrada no delineamento do ideário do Iluminismo. Enquanto Gottsched procurava na imitação dos clássicos franceses a solução para a modernização do teatro alemão, Lessing procurava na fusão de idéias dos antigos gregos com os modernos ingleses a criação do teatro burguês alemão. Esses jovens literatos, seguindo o modelo da Empfindsamkeit (Sentimentalismo), no qual cultuava-se a amizade e o sentimento de união íntima e pessoal com Deus, viam como contraposição ao artificialismo barroco e cortesão o ir além do uso exclusivo da razão e propunham uma valorização da expressão dos desejos individuais como forma de se instituir um modo mais natural de se viver. Muito embora a proposta de Lessing de instituição de uma literatura burguesa fosse uma atitude revolucionária, faltava para eles ainda a liberdade de não se submeter ao mundo do trabalho. Diz Werther: “E és tu o único culpado disso, tu quem me introduziste nestas funções e que me pregaste a atividade. Atividade!”. Se a instituição do novo paradigma reside na substituição da estrutura de valor pela função que se exerce na sociedade, faltava ainda aquilo que tornaria o sujeito racional um indivíduo: a realização livre de seus desejos e inclinações. Este era o dilema de Werther: um ser “deslocado” que enfatizava a potência do sentir e se via completamente perdido, caso não conseguisse viver de modo absoluto sua paixão, esta era a única possibilidade de não se colocar limites à imaginação criadora.
As confissões de um eterno amador
O título da obra, Os sofrimentos do jovem Werther e a introdução que antecede a série de cartas resumem sinteticamente o tema: a exposição franca e direta do estado de paixão e seus reflexos, efeito alcançado pela sua forma epistolar. A intimidade com a qual o leitor acompanha o nascimento e a incrementação do estado de paixão difere de qualquer outro romance anterior, no qual se tenha usado o recurso de exposição de cartas. Este gênero de romance estava em voga e já havia sido usado com sucesso na Inglaterra por Richardson (Pamela, 1740; Clarissa, 1748) e na França por Rousseau (A nova Heloísa, 1761), mas são, segundo Paul Kluchkohn, pálidas expressões da força do amor, se comparadas à pujança do texto de Goethe. A coletânea de cartas a seu amigo Wilhelm não oferece ao leitor a contraparte, mergulhando-se única e exclusivamente no mundo de um só “Eu”, o de Werther. Tudo o que se vê e se percebe é unicamente filtrado pelo íntimo do personagem, o que acentua o perfil psicológico da narrativa. Gostando ou não do modo como se apresentam e se interpretam as situações, essa é a única possibilidade que é dada ao leitor, com o qual se forma uma forte aliança, deixando-o em sintonia com os embates travados no íntimo do personagem. É uma afirmação contínua do primado da subjetividade em relação ao mundo exterior tanto em termos de conteúdo como na forma. Desse modo, pode ser revelada a verdadeira natureza interior de forma imediata.
A própria natureza exterior é também um tema caro a esses jovens, sobretudo para Goethe, pois representa a própria fonte de criação. As forças orgânicas em estado de permanente transformação e movimento geram o novo, o que supera a morte como finitude e a transforma em parte de um processo ininterrupto. Essa idéia se opõe à explicação da natureza de modo mecanicista, “hábito detestável das fórmulas científicas e dos termos consagrados”. Sob essa perspectiva, era analisada de forma rígida e de acordo com regras exatas da matemática, como se fora um relógio, sendo Deus o relojoeiro.
Werther, assim como a natureza, pode ser interpretado sob a ótica de um jogo de forças contrárias que constituem os movimentos distintos das duas partes do livro. A primeira força que o impulsiona num movimento ascendente é percebida através da leitura positiva do mundo. Ao chegar à cidade, Werther encontra em seus arredores um “santuário”, a natureza em primavera, que nele desperta um sentimento de culto ao divino: “tudo o que me cerca parece um paraíso”, representando uma volta à idade do ouro, anterior ao pecado original. Encontra também os homens do povo, os homens “naturais”, “a gente humilde do lugar”, com seus “costumes patriarcais”: são os exemplos de uma humanidade ancestral, original e mais verdadeira. Algumas cartas adiante, desperta sua paixão por Lotte como um amor sem barreiras convencionais, por isso “natural”. Na figura de Alberto tem-se seu antagonista, o representante do mundo do encaixe às normas burguesas de funcionalidade.
Já no segundo livro, a força tem movimento ascendente, narrando como se sente deslocado em meio à nobreza repleta de “gente estúpida” com suas “odiosas distinções sociais”. Cansado do artificialismo, ressurge a vontade de voltar a estar ao lado de Lotte, mas em seu regresso encontra uma natureza outonal, com folhas a cair revelando uma paisagem nua, e que nas tempestades demonstrava sua capacidade destruidora. Assim também iam pouco a pouco morrendo as esperanças de Werther e despertando em seu íntimo a convicção pelo ato suicida.
Werther é então um forte ou um fraco? É um libelo ao Iluminismo ou um herói anti-iluminista? Conforme as distintas interpretações feitas ao longo do século 20, seu suicídio pode ser visto como o ato de um ser desequilibrado e doente que padece de depressão maníaco-depressiva, assim como um gesto corajoso e revolucionário, de um ser incorruptível, expressão afirmativa da liberdade absoluta em contraposição às limitações impostas pela cultura burguesa. De qualquer forma, em conformidade com o próprio desejo do personagem: “Quero fruir o presente e considerar o passado como passado”, o que permanece até os dias de hoje é a expressão de um eterno estado de paixão.
Magali Moura é professora adjunta de Literatura alemã, na UERJ