O eleitor no espelho e as razões de voto que a esquerda não vê
Operários, Tarsila do Amaral, 1933 (Foto: Wikiart/Reprodução)
Tudo começou com a pergunta de um estudante, diante de um aparente enigma eleitoral da cidade do Salvador. “Por que negros e mulheres são claramente a maioria nesta cidade, mas elegemos em geral homens, brancos e ricos, mesmo quando há candidaturas de negros, mulheres e pessoas com origem na periferia com que a maioria da população poderia se identificar?”
É uma questão importante, e não apenas local. No que diz respeito a esta cidade, é fato que desde a primeira eleição republicana para o que seria o chefe do Executivo local, em 1892, o mandato de intendente e, depois, de prefeito, foi atribuído cerca de 69 vezes. Em 68 delas, o cargo foi ocupado por homens, com a honrosa exceção da prefeita Lídice da Mata (então no PSDB), eleita por voto direto dos seus concidadãos, e que exerceu a função entre 1993 e 1996. Não tenho conhecimento histórico suficiente para afiançar quantos foram os não brancos a dirigir o Executivo municipal, mas a minha memória alcança apenas Edvaldo Brito (da ARENA), negro, que foi prefeito entre agosto de 1978 e março de 1979. Com o detalhe de que foi eleito por voto indireto da Assembleia Legislativa. Já tivemos até um prefeito eleito por voto popular de origem judaica; africana ou negro-mestiça, não.
Em Salvador, “a quem Deus entendeu que devia dar a primazia, pro bem, pro mal”, como diz Gil, de tudo que representa o país, a demografia sempre esteve de um lado e as decisões eleitorais, do outro. Alega-se que esta é maior cidade negra fora da África, e há de ser verdade, mas a liderança política espelha mais a classe e o gênero dominantes da cidade do que o da população em geral, mesmo se consideramos que o voto direto e realmente universal para a eleição de prefeitos seja uma experiência para valer apenas desde 1985.
É fato, portanto, que a liderança política eleita de Salvador, como, de resto, de todo o país, anda na contramão da demografia da população e completamente alinhada com o perfil demográfico da classe dominante. Estivéssemos ainda na era dos prefeitos biônicos e intendentes nomeados pelos chefes de governo da Província ou do estado, seria mais fácil entender a razão de a sociedade não se espelhar nas lideranças políticas, mas depois do voto universal, o que ainda explica o fenômeno? Por que o recrutamento de líderes não obedece a uma lógica do espelhamento universal?
Esta é uma excelente pergunta, para a qual, infelizmente, não sei a resposta. Tenho, entretanto, a suspeita de que não se sustente ante os fatos o pressuposto de que um mecanismo de identificação psicológica e social entre eleitores e eleitos seja a mais natural das opções eleitorais.
Sim, parece-me que seja mais justo e fecundo um país em que o perfil demográfico da distribuição do poder político se aproxime do perfil demográfico da sociedade. Mas como combinar essa lógica da identificação com os que, afinal de contas, são as donas e os donos dos votos? No caso brasileiro em geral, e soteropolitano em particular, os donos dos votos são a massa de não brancos, de pobres e de mulheres, que, a rigor, podem decidir, de forma isolada ou combinada, qualquer disputa eleitoral, na maior parte do país. E até o fazem, como no caso dos pobres ou das mulheres, mas não sentido da lógica da identificação.
E a palavra-chave para examinar pragmaticamente o problema é “razão de voto”. Antes de imaginar que a nossa razão para votar em alguém para prefeito ou prefeita é a única e a melhor, a prudência nos deveria obrigar perguntar qual razão de voto dos outros.
A esquerda em geral tem certeza de que o melhor para as mulheres seria votar em mulher. Assim como melhor para negros, “periféricos”, LGBTs, e trabalhadores seria votar em seus semelhantes. Para mim, parece um critério aceitável, cum grano salis naturalmente, mas alguém combinou com os russos?
Aparentemente, oferecer candidatos a prefeito em Salvador com base no fato de que são negros (são quatro este ano), mulheres (duas) e “periféricos” (quatro) não está adiantando. O jogo ainda está sendo jogado, mas as pesquisas parecem dizer que as pessoas não estão ansiosas para consumir esta oferta. Isso deveria significar, para todos nós, que essa lógica da identificação dos eleitores com os eleitos segundo a qual o eleitor quer se ver espelhado nas suas lideranças segundo pertinências identitárias fixas – como ser da periferia, ter o mesmo gênero, a mesma cor e/ou a mesma orientação sexual – talvez não seja, efetivamente, a principal razão pela qual a maioria das pessoas escolhe prefeitos.
Estarão necessariamente errados
os eleitores? Parece-me arrogante
dizer isto, principalmente porque
é um fenômeno bastante universal
nas democracias contemporâneas.
Em que país, por exemplo, as mulheres são espelhadas na representação política? Mas a questão a ser respondida aqui deveria ser: o que é um prefeito e por que ele ser do meu gênero, da minha cor e da minha origem social deve ser a pertinência mais importante para a sua eleição? Por outro lado, se não é por identificação dessa natureza que as pessoas elegem, quais são as outras razões para a decisão de voto e por que essas outras razões deveriam ser menos nobres, dignas e válidas do que estas?
Enquanto não decifrar essas perguntas sobre as razões de voto da maioria, a esquerda, sobretudo a nova esquerda identitária, vai continuar a dizer, eis aqui candidatos mulheres, negros e negras, LGBTs e periferizados, escolha-os porque eles são iguais a você, mas os consumidores eleitorais não os escutarão uma vez que, por exemplo, estão neste momento procurando meramente uma síndica, um mestre de obras ou uma pessoa que simplesmente lhes pareça honesta. O que lhes resulta ser, nesta circunstância, uma necessidade mais premente do que escolher alguém que tenha exatamente as suas mesmas feições.
A esquerda, claro, vai bater o pé e dizer que “o povo” ainda não entendeu o que é melhor para si mesmo, que com mais pedagogia e removidos os obstáculos da mídia, das elites e do colonialismo a massa ainda irá consumir os candidatos finos que só a esquerda põe à mesa. Em suma, a esquerda continuará fiel à sua ideia de que as pessoas é que precisam mudar, e não a oferta eleitoral e as razões de voto que ela, a esquerda, apresenta. Mas talvez fosse o caso de, eventualmente, ajustar a sua oferta política às demandas reais, se quiser começar a negociar melhor com o mundo tal qual ele é. Era “dialética” que chamava esse negócio de negociar com a realidade, não é?
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)