As imperfeitas simetrias de Alberto Dines
O jornalista Alberto Dines em sua biblioteca, São Paulo, 2014 (Foto: Luiza Fazio/ Revista CULT)
Numa rua sem saída que o burburinho da Vila Madalena, em São Paulo, custa a invadir, fica a biblioteca/escritório do jornalista e escritor Alberto Dines, 82. A casa, coberta de trepadeiras, é identificada por uma placa em azulejo: Jornalistas Associados, Alberto Dines e Norma Couri. Sem sinal de campainha, batemos três vezes na porta lateral. Dines nos recebe com um gentil aperto de mão e, em seguida, nos guia até o escritório por um caminho cercado de altas estantes lotadas de livros. “Vire à esquerda, depois à direita”, explica, em meio à estreita passagem.
No escritório, mais livros. Nada catalogado, somente dividido por temas. “Literatura fica mais no canto de Norma, minha mulher. Eu não vou muito lá.” A iluminação é garantida por três lustres e algumas luzes de leitura. Não há espaço livre na mesa, ocupada por jornais do dia, livros e papéis de toda a sorte. “Eu tenho uma curiosidade enorme. A toda hora, encomendo mais livros. Não cabe mais nada aqui!”. Ao seu lado, uma foto dos quatro filhos (do primeiro casamento), tirada nos anos 70, pouco antes de embarcar para os Estados Unidos, como professor visitante da Universidade de Columbia. Na parede, uma lembrança dos anos 1960: um pôster de Casablanca com sua imagem ao lado de Ingrid Bergman “Foi uma brincadeira de um companheiro do Jornal do Brasil, que eu guardo para sempre. Ela era linda demais, extraordinária”, suspira com cuidado, para que Norma não escute.
São dessa época alguns dos trabalhos mais importantes da carreira de Dines, então editor do JB: a cobertura da Guerra dos Seis Dias (por sorte, estava na Europa, e teve o acesso a Israel facilitado), as capas sobre o AI-5 e a morte de Salvador Allende, que driblaram a censura, além do livro Os idos de março e a queda em abril, lançado poucos meses após o golpe militar e escrito em parceria com Antonio Callado e outros jornalistas. Alberto Dines coleciona uma série de histórias como jornalista, passando da crítica de cinema à edição geral simultânea de jornais matutinos e vespertinos de Samuel Wainer. Houve também o tempo na Folha de S. Paulo, na coluna Jornal dos Jornais, e, finalmente, a criação do Observatório da Imprensa, que analisa e faz a crítica do noticiário.
Carioca de nascimento, com direito aos dois beijinhos regulamentares na chegada e na saída, Dines vem de família de origem ucraniana, da província de Rivni — que, na época de sua infância, pertencia à Polônia. Ainda menino, com cerca de sete anos, acompanhou de longe a Segunda Guerra Mundial, mais assustadora ainda por conta dos avós e tios judeus que moravam na Polônia ameaçada pela ocupação nazista. “Tenho lembranças do início da guerra como se fosse hoje. Era um neném, mas tinha noção perfeita dos acontecimentos. Meu pai era muito bem informado, assinava jornal, e um irmão cinco anos mais velho me explicava tudo. Eu sou um filho da Segunda Guerra; tudo isso está dentro de mim.”
Todos os acontecimentos em torno de Alberto Dines produzem reflexos em sua vida e na sua obra. Sensível às mudanças políticas e chegado a simetrias imperfeitas, o jornalista compara o Estado Novo com o período de distensão na ditadura militar brasileira; março de 1964 com os idos de março da história do imperador romano Júlio César, por exemplo. Também relaciona a produção literária às suas origens. Escreveu contos judaicos e biografias de personagens judeus. “Eu vivi nesse meio. Vou escrever sobre o quê? O Ceará?”
As “simetrias”, os assuntos que se encontram, as coincidências, são fundamentais para Dines, pois vêm desde a união dos pais. “Minha mãe era cultíssima. Tinha o apelido de ‘sufragista’, quando jovem. Hoje em dia, seria chamada de feminista. Ela falava ídiche, hebraico, russo e português; era uma mulher muito refinada. Meu pai tinha muita cultura, mas era um operador. Fez secretariado e trabalhava numa organização de ajuda aos imigrantes. Sempre esteve envolvido com a comunidade judaica. Eu sou a combinação perfeita dos dois.” Respeitando os traços maternos, Dines estudava de manhã em escolas “granfinérrimas” e, à tarde, pendia para o lado do pai e ia trabalhar numa oficina: “Vestia macacão e sujava as mãos de graxa todos os dias. Era ótimo”, lembra.
Jornalismo em literatura
Outra “simetria” tem sua primeira parte um ano após o começo da Guerra, quando a Escola Popular Israelita Brasileira Scholem Aleichem, em que estudava, recebeu a visita do escritor Stefan Zweig. O judeu austríaco criador da expressão “Brasil, o país do futuro”, já estava presente na casa de Alberto Dines, numa foto autografada carinhosamente colocada na parede da sala de visitas. O suicídio dois anos depois e a comoção da comunidade judaica em torno da morte de Zweig, em protesto contra o extermínio de judeus pelos nazistas, marcariam a infância de Dines, que o transformou em tema de sua primeira biografia.
Foi somente em 1978, quando o Brasil vivia uma “semi-ditadura”, que Alberto Dines reconectou-se a Stefan Zweig: “A imprensa não estava mais controlada, já se discutia anistia, já se sabia que o próximo presidente militar seria o último. Era o fim de um processo, mas [Vladimir] Herzog havia morrido apenas três anos antes. O momento me remetia à ditadura do Estado Novo, que foi proclamada por Getúlio Vargas em 1937. Achei muitas semelhanças, e me lembrei de Stefan Zweig, acusado de ter sido comprado por Getúlio. Como escreveu um livro elogiando o brasileiro, as pessoas acharam que ele elogiava o governo brasileiro”.
Naquele momento, Alberto Dines trabalhava na Folha de S. Paulo e escrevia uma sátira política, “uma gozação do regime militar, que já era permitida”. Durante o processo, o jornalista se deparou com a frase “Aquele que inventou o paraíso nele se matou”: “Era uma ideia bem sacada, que eu achei que daria para ser explorada num livro sobre Stefan Zweig. Naquela hora, surgiu o livro Morte no paraíso”, afirma.
O escritor austríaco continua rondando seus pensamentos. Dines descobriu que as atrizes Ingrid Bergman, sua queridinha, e Joan Fontaine eram fãs dos romances dele e chegaram a filmar algumas adaptações. Ficou sabendo que, em comum, adoravam música clássica. Zweig chegou a ser amigo pessoal do maestro italiano Arturo Toscanini. As incidências de elementos próximos não paravam de aparecer: Zweig havia sido pupilo de Romain Rolland, escritor francês autor do livro de cabeceira de Dines na juventude, Jean Cristophe, sobre um jovem idealista que acreditava no amor e na paz mundiais. “Com a biografia de Stefan Zweig, eu também iria retomar o contato com seu guru, Romain Rolland, cujo livro me inspirou muito aos 15 anos”.
A cada edição, Dines descobre e adiciona mais à biografia de Zweig. Assim também acontece com outro personagem, António José da Silva, o Judeu, escritor e dramaturgo nascido no Brasil colônia e morto em Portugal pela Inquisição. Para escrever Vínculos do fogo, a biografia de António José da Silva, Alberto Dines ficou cerca de oito anos em Portugal e reuniu mais de 400 processos lidos na Torre do Tombo. Sua relação com o biografado também é antiga: “António me foi apresentado por uma professora de português, coincidentemente, judia. Tinha mãos lindas…”, acrescenta.
Dines diz que melhor se adaptou à biografia porque o gênero “junta literatura e jornalismo”. Porém, por volta dos 18 anos, o jornalista escreveu contos judaicos, “antes de [Moacyr] Scliar ou Samuel Rawet”. A literatura e a música eram paixões antigas, do tempo em que ouvia a rádio Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro. Era costume telefonar aos amigos e comparar predileções, como Tchaikovsky e Chopin (os românticos ainda são seus favoritos). “Depois, percebi que havia artes mais completas do que a música ou até a literatura. Me apaixonei pelo cinema, que envolvia tudo: imagem, ação, música, roteiro…”.
Cinema em revista
O envolvimento de Dines com o cinema foi crescendo, até virar profissão. Tendo desistido da escola no “segundo científico”, devido aos ideais do movimento sionista socialista de que participava, só lhe restava escolher um campo de trabalho. “Os judeus tinham que ir a Israel, é claro, fazer revolução com as próprias mãos, esquecer as profissões burguesas, viver uma vida simples nas colônias coletivas — chamadas de “kibutz”. Para participar do movimento, o primeiro teste era parar de estudar”, explica. Em Israel, nunca morou, mas de lá mantém alguns bons amigos. “Todos com mais de 80 anos, mas nós sempre conversamos por Skype”. O jovem Alberto passou por cursos de direção de trator e trabalhos braçais, até que, com 19 anos, o jornalista de esportes Levi Cleiman o indicou para a revista A Cena Muda, como crítico de cinema. “Tinha que ver filme toda noite, pois eles ficavam pouco tempo em cartaz”.
Como um dos poucos cinéfilos da época, Alberto Dines estudava cenas de Eisenstein e história do cinema com um velho amigo (“que, aliás, faz anos hoje [20 de março]. Tenho que ligar para ele mais tarde”, fica aqui a lembrança), com quem também frequentava as sessões de filmes e o chamado Café Vermelhinho, reduto dos jornalistas na época. “Depois de lá, o pessoal ia para uma leiteria comer um ovo estrelado”, conta. Por esses passeios, Dines conheceu Naum Sirotsky, que o chamou para trabalhar como crítico na revista americana (escrita em português) Visão, em 1952. Foi lá que conheceu Eduardo Coutinho, com quem trabalharia mais tarde no JB.
Em três meses, Visão mudou-se para São Paulo e Alberto Dines foi junto. “Era o momento mais lindo de São Paulo: a preparação do quarto centenário, criação do Ibirapuera, o teatro TBC, cinemas…”, recorda. Foi morar numa pensão na Nestor Pestana. “Foi praticamente cortar o cordão umbilical da família”, brinca.
Além da experiência jornalística, Dines aproveitara o tempo livre para trabalhar com cinema. A oportunidade chegou com Mário Tivelli — “um tipo embromador, loiro, de olhos azuis e com uma gargalhada que sacudia as casas” —, que o chamou para escrever roteiros. Dois chegaram a ser rodados, um deles o primeiro filme brasileiro sobre futebol: O craque. Mas a saudade de casa o incomodou, “estava meio solto”, e voltou para o Rio.
Após ter trabalhado também na revista Manchete, Alberto Dines tinha agora mais confiança no texto e nos procedimentos de edição de revistas. Até que Samuel Wainer o chamou para escrever no segundo caderno do jornal Ultima Hora. “Eu sabia de revista, mas jornal diário…” Quando assumiu a edição, Dines sentiu-se perdido: “Em jornal, você tem que dar muita coisa na primeira página. Eu dei uma foto em oito colunas”. Samuel Wainer foi compreensivo. Saía das boates com Danuza Leão direto para ver seu jornal rodar. “Ele me disse: ‘Não está bom, mas amanhã vai ficar’”. E ficou tão bom, que, à certa altura, Dines virou responsável pelas edições matutina e vespertina. “Eu tinha 25, 26 anos, então dava!”, afirma, com os olhos vivos e as mãos expressivas.
Depois das noites mal dormidas, Dines trabalhou no jornal de Assis Chateaubriand, o Chatô, com João Calmon. O jornal que havia publicado textos de Nelson Rodrigues e vendido 200 mil exemplares, agora não chegava a oito mil. Dines reformou o veículo, mas foi demitido por noticiar o primeiro sequestro político em tempos modernos, o do navio Santa Maria. O barco parara perto de Fernando de Noronha em revolta contra o regime ditatorial de Salazar, em Portugal. “Acontece que Chatô era amigo de Salazar. Ele deu ordem para que não se colocasse uma linha sobre o sequestro no jornal. Naquela época, os donos de jornal faziam isso, mas eu estava com as fotografias e não podia perder essa chance. Botei na capa, na página central e na última página.” Foi demitido no dia seguinte.
Até tu, JB?
Em 1962, Dines teve o emprego mais marcante de sua carreira, no Jornal do Brasil. Editor-chefe com apenas 30 anos, enfrentou a ditadura militar desde a confusão inicial até a prisão e o AI-5, em 1968. Os idos de março e a queda em abril foi escrito com companheiros de JB. O título veio de uma lembrança de Dines: “Estava assistindo a uma reprise de Júlio César, a peça de Shakespeare gravada em filme, e o pressentimento de um vidente se repete por todo o filme: ‘atenção para os idos de março’. A tragédia política de Júlio César foi sua morte, no final dos idos de março, e a nossa também veio, logo depois”.
O livro, escrito em 15 dias, era tentativa de compreensão do golpe. “As pessoas estavam impregnadas entre a direita e a esquerda. Ninguém percebia o confronto”, segundo Dines. Independentemente da movimentação dos jornalistas, todos os donos de jornais eram a favor do golpe. Ou seja, toda a imprensa, menos o jornal Ultima Hora. O crescendo da ditadura militar tomava formas mais trágicas que a encenação de Júlio César. “Foi um período trágico, difícil. Como ele se esticou muito, você vai convivendo com as coisas… Você acha que a vida continua, mas não continua. Eu comecei a fazer análise por causa dessa situação”.
Em 1968, Alberto Dines já era uma pedra no sapato do JB. Em 13 de dezembro foi baixado o Ato Institucional nº 5, e, dois dias depois, Dines discursou como paraninfo da turma de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na qual era professor desde 1963. “Eu estava lá, com meu ex-namorado”, interrompe Norma. “Eu conto!”, rebate Alberto. “Meu pai, que era advogado, falava assim: ‘esse vai sair daqui preso’, e não deu outra”, prossegue Norma. “Preparei um discurso sobre a situação brasileira, a ditadura, censura, falando tudo! Mesmo eu nunca tendo entrado numa universidade como aluno, achava que devia passar minha experiência para alunos. Por isso, criei a cadeira de jornalismo comparado.” Sobre o discurso na PUC-Rio, Dines deixou um texto pronto para ser publicado no JB por seus companheiros: “Quando o editor-chefe participa de alguma coisa, normalmente sai uma referência”, justifica.
Um dos censores não gostou do teor do discurso de Dines e, dois dias depois, o jornalista foi preso em casa. Ficou um dia depondo e foi liberado. “Naquela época, não se torturava. Mas tinha a violência de ser preso”. Quinze dias depois, foi preso outra vez. Haveria, naquela noite, uma reunião dos donos do jornal com os censores, para que fosse instaurada uma autocensura. A prisão aconteceu exatamente para que ele não participasse do acordo, e ele saiu, como descobriria mais tarde, com a permissão de seus empregadores.
A gota d’água foi a morte do presidente chileno Salvador Allende, em 1973. A ordem da censura era não dar manchetes sobre Allende, “para que não houvesse uma comoção no Brasil”. Dines, então, fez um jornal sem manchete. “Eu contrariei e ridicularizei uma ordem da censura e fui demitido por isso”, relata. “Fui um Júlio César também, demitido por indisciplina depois de doze anos no JB”. A situação após a demissão de Dines ficou complicada. Os veículos que antes brigavam por sua contratação agora evitavam fazer propostas de trabalho: “as portas se fecharam”. Roberto Civita, amigo pessoal, o aconselhou a sair do país e, misteriosamente, surgiu o convite da Universidade de Columbia. “Civita sempre disse que o convite não foi obra dele, mas eu acho que foi”, lembra Dines.
O caminho do Observatório
Nos Estados Unidos, o jornalista teve contato com a conclusão do caso Watergate e com as inúmeras análises da imprensa sobre aquela cobertura, o que não se via no Brasil. Em 1975, de volta, assumiu a sucursal carioca da Folha de S. Paulo a convite de Cláudio Abramo. “Nessa nova fase, que durou cinco anos, escrevi muito mais do que em doze anos de JB. Quando Octávio Frias de Oliveira me contratou, não pedi que aumentasse nem um centavo o meu salário, mas queria ter uma coluna sobre imprensa. Eu não era ombudsman, porque falava dos veículos em geral, e não da Folha. Fui avisado mais de uma vez que criaria muitos desafetos com a coluna, que se chamava Jornal dos Jornais”.
Os textos que não entravam na edição da Folha iam direto para o Jornal da Cesta — referência a cesta de lixo —, sua coluna no periódico O Pasquim. Entraram nesta leva alguns artigos contra Paulo Maluf, recusados pela diretoria da Folha e aceitos de bom grado pelo Pasquim. Segundo Dines, foram os textos contrários a Maluf que levaram à sua demissão do jornal paulista. A indenização, entretanto, permitiria que se dedicasse à preparação da biografia de Stefan Zweig.
Após alguns trabalhos na Editora Abril e o lançamento da biografia do judeu, Dines voltou ao modelo de análise da imprensa que tanto lhe interessara. Numa época em que os empregos em jornalismo já se tornavam escassos, ele criaria o seu. Em 1996, lançou o Observatório da Imprensa. “A importância do Observatório está no fato de ele continuar de pé. Nada continua nesse país. E juntaram-se a ele pessoas importantes como Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Venício Lima e muitos outros”. Junto ao site, a iniciativa ganhou programa de televisão e rádio, todos contando com a dedicação total de Alberto Dines.
Nos finais de semana, o casal descansa: “Eu e Norma ficamos zapeando canais e assistindo a grandes filmes”, conta. A música clássica também é programa constante. O jornalista aprecia o som dos violoncelos e do naipe de madeiras, do oboé, do clarinete e do fagote, e não deixa de reservar um tempo somente para ouvir música. “Eu faço uma coisa por vez. A música é absorvente, temos que dedicar o momento só para ela.”
Com 82 anos, o jornalista trabalha ativamente. O próximo passo é o programa Chumbo Quente, sobre a ditadura militar, a que se dedicava na ocasião do nosso encontro. Apesar da agenda lotada, Dines não se limitou a contar histórias, mas abusou das lembranças e esticou a conversa por quase três horas. Nos despedimos com dois beijinhos no rosto e ele voltou para a casa. Alberto Dines acredita que está só “colhendo os morangos”, nos seus trabalhos recentes, como o Observatório e as biografias, com reedições previstas para breve. “Eu ainda tenho que fazer a torta”, brinca.
(1) Comentário
Alberto Dines..presente, hoje e sempre….