As flores novas de Baudelaire
Charles Baudelaire, poeta francês (Reprodução)
Nous voulons, tant ce feu [nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, [Enfer ou Ciel, qu’importe?
[Au fond de l’Inconnu pour [trouver du nouveau!
(“Le Voyage”, As Flores do mal)
Charles Baudelaire foi, senão o maior, ao menos o “mais importante” poeta francês, segundo a formulação de Paul Valéry. O autor teria dado à poesia francesa uma dimensão européia, que a fez traduzida e influente em outras línguas e nações. E, de fato, poucos poetas produziram um impacto tão grande e tão variado na literatura ocidental quanto Baudelaire, hoje considerado o iniciador artístico e intelectual da “modernidade”, sem a qual pouco se pode entender da poesia escrita nos últimos 150 anos.
O reconhecimento que cerca sua obra foi poucas vezes contestado e se manifesta, ainda hoje, como uma dívida que nos cabe entender e reelaborar. Pois, se por um lado, a poesia de Baudelaire parece sintomática de uma época da cultura européia, por outro lado, ela tem criado alternativas produtivas para a poesia, suscitado novos modos de leitura do mundo em que vivemos.
Para Mallarmé, para Verlaine, para Rimbaud, na expressão deste último, Baudelaire já era “um verdadeiro Deus”, o que, se designa o poeta como origem, o mantém a distância, no mesmo gesto. A conseqüência é que a poesia de Bau delaire corre o risco de ser venerada a uma certa distância, neutralizada pela história literária, guardada muito respeitosamente à margem das razões de sua intranqüilidade, ou seja, daquilo que a faz ser lida e amada.
Uma poética do contraste
Ora, mesmo quando acerta suas contas com os hábitos poéticos e ideológicos da época, Baudelaire justapõe de maneira muito peculiar o verso de recorte clássico e a matéria insólita, a alegoria filosófica e o elemento realista, a racionalidade ponderada e a dissonância produtiva. Um dos traços que particularizam sua poesia é a capacidade de produzir o “duelo”, de colocar em cena elementos e situações de contraste. Seu princípio poético é o “choque”, diria Walter Benjamin.
A princípio, esses contrastes parecem ser o resultado da dupla vinculação do autor, admirador de pintores e poetas românticos (V. Hugo e E. Delacroix, por exemplo) e adepto das idéias de rigor do formalismo poético nascente (As Flores do mal são dedicadas a Th. Gautier). Mas os poemas de Baudelaire desafiam a comodidade da própria distinção e ordenação dessas afinidades, às quais se deveria incluir a figura emblemática de Edgar A. Poe. Tanto os versos de As Flores do mal quanto a prosa poética de Spleen de Paris (ou Pequenos poemas em prosa) exploram cruzamentos inesperados e situações não resolvidas que são verdadeiros dilemas para o sentido da obra. Basta lembrar que o poeta reivindica, como “gosto superior”, a coragem de “se contradizer”.
Baudelaire abandona o sentimentalismo de tipo romântico, mas nem por isso o destino do eu poético se dissolve na neutralidade matemática da composição. A idéia da “despersonalização”, que ganharia sua conhecida formulação em Mallarmé, é apenas em parte pertinente para definir o que ocorre quando Baudelaire renega a “poesia do coração”. Opondo-se à sinceridade do coração, o “amor à mentira” baudelairiano (cuja descendência ilustre se encontra na figura do “fingidor”) traz em germe toda a problemática da subjetividade na poesia moderna.
Violência e sacrifício
Na poesia de Baudelaire, convivem a concentração do eu e sua dispersão na direção de um outro (deus, mulher, multidão). No contexto de uma fenomenalidade cristã, a figura do Mal se destaca, como já indica o título de seu livro mais conhecido, invertendo a centralidade do bem natural rousseauísta e afirmando a “queda” como origem da degradação vivida. O Spleen é a figura por excelência da asfixia, da miséria e da morbidez de uma experiência regida pelo Mal. Agregam-se a ele várias outras figuras do negativo, entre as quais a mais alegórica é a do próprio Satã.
É importante lembrar que esse eixo metafísico entra em choque com uma horizontalidade de relações (plasticidade sinestésica, pontuações ideológicas), constituindo aquilo que seria propriamente a “modernidade”, ou seja, a busca do que há “de eterno no transitório”, de “poético no histórico”. Desse modo, o Mal se encarna no “mal-entendido”, mediado pela violência, como ausência de compaixão pelo outro (o miserável, a prostituta, o leitor). Mas a cólera combina-se, misteriosamente, com uma espécie de comunhão sacrificial com esse outro. A misoginia baudelairiana, por exemplo, tem traços dessa alternância entre vítima e carrasco: a mulher tem algo de grotesco ou de solene, de repugnante ou de irresistível, às vezes ao mesmo tempo. Ela traz em si a “natureza”, mas também a marca enobrecedora do teatro do sofrimento. Em Baudelaire, a violência e o sacrifício não se anulam, pelo contrário, mantêm-se como contrariedade que movimenta o poema.
Nesse sentido, deixando provocadoramente irresolvida a convivência entre a atitude estética do dandy e uma ética quase religiosa diante da vida, o poeta não define as prioridades entre eterno e transitório, estético e histórico. Ele dramatiza a violenta fragilidade do comércio entre esses elementos, e o pathos que daí surge apenas ganha sentido quando consideramos o elemento incalculável que lhe perturba o arremate. Isso explica, em grande parte, a dificuldade da crítica em separar o que é a força reveladora da poesia de Baudelaire daquilo que é a fraqueza de sua “alienação”, expressão passiva de um mal-estar social.
Pela sua ambivalência, as “flores novas” com que sonhava Baudelaire nos aparecem, ainda hoje, como enigma que nos esclarece e como lógica que nos desmente. Assim, a consagração de sua poesia não deveria nos afastar do impacto de sua presença, de sua capacidade de formular uma promessa de sentido. É com as razões da contradição e com as ruínas da his toricidade que deveríamos endossar sua força de desassossego.
Marcos Siscar é professor de Teoria da Literatura na Unesp (São José do Rio Preto), autor de Jacques Derrida: rhétorique et philosophie (L’Harmattan), entre outros