As faces poéticas do político

As faces poéticas do político
O crítico Ismail Xavier, um dos mais importantes pesquisadores do cinema brasileiro (Foto: Reprodução/IEA)

 

Nelson Pereira dos Santos disse uma vez que o cinema novo era “Glauber Rocha no Rio de Janeiro”, fórmula feliz que sintetiza o papel catalisador exercido pelo cineasta baiano junto aos jovens realizadores que buscavam novas formas de ver o país. Essa proeminência se concretizou porque Glauber foi, além de homem de cinema, um homem de letras. Jornalista, crítico e agitador de idéias, ele soube construir, paralelamente à obra cinematográfica, uma considerável produção escrita composta por manifestos, críticas, artigos, poesia, diários e narrativas de ficção, que iluminam não apenas seus filmes e o cinema moderno em geral, mas também o intenso debate cultural travado no Brasil dos anos 60 e 70.

Revisão crítica do cinema brasileiro é um livro-manifesto, um livro de intervenção crítica muito agressiva. Foi escrito pouco antes do início das filmagens de Deus e o diabo na terra do sol, num período muito curto. Nele, Glauber condensa o trabalho crítico que vinha fazendo desde 1957, adaptando vários textos já publicados, principalmente sobre o documentário – em que merecem destaque observações sobre filmes como Aruanda (1959), de Linduarte Noronha, e Arraial do cabo (1959), de Paulo Cesar Saraceni –, além do capítulo dedicado ao mineiro Humberto Mauro. “Glauber faz um arranjo dos dados que queria mobilizar para sua intervenção, traçando um retrospecto para inventar uma tradição capaz de sustentar um projeto e um programa para o cinema brasileiro. Ele define valores, escolhe o que deve constar como inspiração e o que deve ser descartado, oferecendo seu ideário e seu programa aos interlocutores contemporâneos”, observa Ismail Xavier, pesquisador, professor da ECA-USP, um dos maiores estudiosos da obra do realizador baiano e responsável pela introdução do livro.

Apesar de lidar com a história do cinema brasileiro, Revisão crítica não pode ser considerado como uma análise histórica no sentido acadêmico. “Glauber se confronta com as figuras mais visíveis do cinema brasileiro, seja numa chave de antagonismo ou de retomada, como é o caso de Humberto Mauro, escolhido como precursor do cinema novo.” Apesar das fragilidades de seu cinema, Mauro é valorizado pelo despojamento de sua mise en scène, que traduzia um “sentimento do mundo” autêntico. Outra figura de peso é Nelson Pereira dos Santos, autor de Rio, 40 graus, filme realista, sem concessões, que Glauber defende como obra engajada, popular e revolucionária. Segundo o cineasta baiano, “o autor no cinema brasileiro se define em Nelson Pereira dos Santos”, erigindo-o como ponto de partida do cinema novo.

Entre as referências rejeitadas está Mário Peixoto, autor de Limite (1931), filme indisponível na época, que Glauber atacou sem ter visto, considerando-o inautêntico e formalista. Mas reconsideraria suas posições na década seguinte, quando, finalmente, pôde ver o filme. Alberto Cavalcanti, que construíra sua carreira na Europa antes de voltar ao Brasil no início dos anos 50, para trabalhar na Vera Cruz, é desconsiderado por não ter aproveitado a experiência de realizadores brasileiros, fazendo um cinema convencional, calcado em modelos importados. Autor do premiado O cangaceiro (1953), Lima Barreto tinha vivência com a realidade brasileira, mas acaba recebendo farpas de Glauber, que se insurge contra a falta de postura crítica do diretor e contra a “fotografia empolada” do filme, que se compraz no pitoresco.

Discurso centrado na argumentação, Revisão crítica tem numerosas citações cujas fontes nem sempre são especificadas. Por isso, a preparação do texto foi minuciosa, oferecendo ao leitor todas as referências que não figuravam na primeira edição. Além disso, uma fortuna crítica foi reunida no final do volume. Essa coleção de resenhas publicadas na imprensa da Bahia, de Minas Gerais, de Rio de Janeiro e de São Paulo na época do lançamento do livro permite compreender melhor o caráter da polêmica, o que está em jogo, “fornecendo uma moldura editorial que oferece dados históricos ao leitor atual, contextualizações, identificação de certos interlocutores”, afirma o pesquisador.

Relançar o livro quarenta anos depois é um gesto com várias dimensões. Primeiramente, é uma forma de recuperar um momento-chave do cinema brasileiro como um todo. Outro aspecto, segundo Ismail, é “produzir conhecimento histórico sobre um momento de gestação de todo um ciclo do cinema brasileiro que tem uma presença hegemônica até o início dos anos 80. Por outro lado, a reedição dá lugar a dois tipos de comparação: a primeira delas nos permite conhecer melhor o momento atual do cinema brasileiro, pois hoje temos uma certa configuração das idéias, dos projetos, dos comportamentos dos cineastas, uma maneira de convivência que contrasta muito com o quadro daquela época. Se chamo a atenção para o contraste não é para mitificar aquele período, apenas digo que é interessante confrontar pois isso ajuda a analisar qualquer situação, inclusive a atual. Além disso, o livro permite trabalhar com a noção de processo. O que se vive atualmente como debate e condições de trabalho é resultado de um caminho que se traçou dos anos 60 para cá e deu algumas balizas para o cinema brasileiro. Mesmo que existam posições antagônicas, como houve nos anos 80, o cinema da década de 90 e da atual não está colocando em pauta questões como ruptura ou continuidade, não há contundência no tom com que se dialoga com o passado, não há o aspecto programático dos anos 60, mas, inegavelmente, o cinema moderno brasileiro, o universo de experiências que vai do final dos anos 50 até o final dos anos 70 define o quadro de referências mais significativo para os jovens que fazem cinema hoje. É muito importante para quem se interessa por cinema tomar contato com a maneira pela qual Glauber, um jovem de 24 anos, lida com um quadro em que as polaridades eram mais nítidas, sem esquecer que ele também ajuda a torná-las mais explícitas”.

A própria maneira como os cineastas de hoje se referem ao passado leva em conta esse quadro. Beto Brant, diretor de O invasor (2002), quando fala sobre os “critérios segundo os quais organizou a imagem, trabalhou com a câmera, com os espaços, com as experiências, com a idéia de interação, o papel da improvisação, a relação entre o fotógrafo e o diretor, deixa claro que tudo isso é muito parecido com o que acontecia nos anos 60, no momento mais heróico do cinema novo”. Mas Brant não está inspirado nele, não há uma convergência programática, porém existe todo um caminho do cinema brasileiro, um referencial que está em parte internalizado. “Os anos 60 foram um momento de revisão geral da história e da cultura. Hoje não há projeto comum, o que existe são olhares individuais para a experiência contemporânea, além de uma diversidade enorme de opções tecnológicas, de opções estilísticas que já estão consolidadas como parte de um repertório. Já não é mais polêmico se valer de certos procedimentos, como a câmera na mão, o plano-seqüência, a descontinuidade, o filme de baixo orçamento – bandeiras do cinema moderno dos anos 60.”

Tomando outro filme recente mas muito diferente de O invasor, como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund, Ismail nota que apesar de todo o trabalho de pós-produção, de manipulação das imagens, de aproveitamento das possibilidades do cinema digital, o filme mostra que mesmo uma produção de alto orçamento, calibrada para o grande público, não pode ser vinculada automaticamente a uma tradição do cinema industrial, nos moldes do antagonismo existente entre cinema artesanal e cinema industrial vigente na época em que Glauber escreveu seu livro. “Essa dicotomia não é vivida hoje nos mesmos termos, pois mudou a tecnologia, mudaram os contextos de linguagem disponíveis. O artifício industrial está presente no filme, mas não aparece mais articulado com o lastro da indústria cinematográfica, do cinema de estúdio, dos equipamentos pesados, tudo aquilo que definia a possibilidade de um filme mais convencional nos anos 50 ou 60. No Cidade de Deus há um trabalho de câmera e um trabalho de interação com o ambiente, com os atores amadores, que lembra, em alguns aspectos, a tradição que vem lá dos anos 60.”

Revisão crítica do cinema brasileiro demarca uma constelação conceitual que foi posta em prática em Deus e o diabo na terra do sol. A estreita relação entre filmes e textos é um traço característico da trajetória do cineasta baiano. Glauber sempre foi muito ligado à literatura e ao teatro. Suas primeiras experiências artísticas, no grupo Jogralesca, eram dramatizações de poemas. “Ele sempre esteve muito atento a um certo trajeto da cultura brasileira tal como expresso na literatura. Desde cedo dialogou com as referências que compõem, de um modo geral, o modernismo, especialmente com a poesia brasileira depois de 1920: ele cita muito escritores como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima. Seu espectro era amplo. Na prosa, há referências freqüentes a José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, autor um pouco anterior a essa periodização, mas um predecessor do modernismo. É uma literatura que tem conexão direta com a idéia de uma descoberta do Brasil, de um repensar o país, de ser anti-retórico, de dar valor à construção artística naquilo em que ela é capaz de interagir com o mundo e com a experiência local, buscando formas dentro do coloquialismo – sem o cerimonial e a pompa dos gêneros tradicionais – aptas a construir a idéia de uma arte empenhada. Isso não é uma qualidade exclusiva de Glauber, pois todos os jovens do cinema novo eram ligados à literatura. Uma outra matriz estilística escolhida por Glauber está nas artes plásticas, no neoconcretismo, vínculo que fica muito claro em Pátio (1959). É a síntese de todas essas referências culturais que vai gerar seu cinema.”

Em Revisão crítica, o cineasta “está preocupado em explicar o cinema que valoriza, não só porque existe uma referência internacional – o neo-realismo italiano, a nouvelle vague, a crítica francesa, a política dos autores –, mas porque este cinema está intimamente articulado com o posicionamento dele diante da cultura brasileira”. Havia um ambiente de inquietação cultural no Brasil, Glauber incorpora isso e lhe dá uma versão cinematográfica. “O essencial é considerar que Glauber, ao inventar seu estilo e ao trazer as questões da história e da cultura brasileira para dentro do seu cinema, produz algo que é consistente com as exigências do crítico. Um bom exemplo disso é a maneira teleológica de pensar. Deus e o diabo é uma grande teleologia da história; Revisão crítica é uma grande teleologia do cinema brasileiro, o cinema novo. A teleologia não é a verdade histórica, ela engendra um programa, e nisso ele não está sozinho na história da arte, os movimentos de vanguarda sempre agiram assim. A tarefa é ambiciosa, mas conseguiu se traduzir em obras à altura da ambição. O momento essencial é a obra, mas ela não exclui o interesse sobre o texto, que mostra a sensibilidade de Glauber e as escolhas que ele faz. O que importa no texto não é a precisão ou a justiça de certos julgamentos, mas a atitude que ele toma, rara entre nós: dizer as coisas com contundência, criar caso, chamar para a briga. É um gesto de intervenção crítica fundamental, que coloca de uma vez Glauber em posição de liderança e convoca os cineastas a segui-lo.”

Outros dois textos marcantes são “Estética da fome” e “Estética do sonho”, presentes em Revolução do cinema novo. “Estética da fome” sistematiza as concepções do diretor sobre o cinema novo, defendendo um cinema artesanal, contraposto ao cinema industrial. Dirigido ao público europeu, o manifesto levanta as bandeiras da fome e da violência, dentro da dialética colonizador/colonizado. “Estética do sonho” é uma resposta às críticas feitas a O dragão da maldade contra o santo guerreiro. “Cobraram a estética da fome no Dragão, mas Glauber argumenta que o filme trabalha o mito e o sonho, definindo uma outra estética. Os textos têm conexões diretas com os filmes a cada momento, assim como a grande entrevista concedida à revista francesa L’Avant-Scène du Cinéma sobre o Terra em transe.” Nos textos, o cineasta explicita inspirações e interlocuções que nem sempre estão tão visíveis nos filmes. “O tom da escrita é sempre contundente, valorativo; Glauber cria um ponto de vista, atua como um crítico, pois crítica é juízo de valor. Ele é um moralista no melhor sentido, ou seja, é aquele que põe em discussão os valores. Glauber manifesta, nas diferentes formas de expressão, sua sensibilidade e o juízo de valor que está contido no seu gesto de escrever ou de filmar.”

A dialética entre o poético e o político é uma constante no percurso do cineasta. Sua preocupação com o poético define seus critérios de valor. “Em função da personalidade dele, do seu empenho em discutir política, há uma tendência a minimizar a questão do estético. Mas desde o início ele tem um compromisso estético radical, isso é decisivo. No Revisão crítica, quando quer elogiar um cineasta, Glauber prefere pinçar momentos pregnantes dos filmes, ou traços de estilo – onde aflora o poético e o autor –, ao invés de falar de estruturas. A relação entre a invenção do estilo, a preocupação com a verticalidade do poético e uma certa exigência de um cinema politicamente empenhado no plano da estrutura da obra é a grande tensão que ele viveu do começo ao fim. Mas essa tensão se resolve de modo diferente em cada filme, de modo totalmente articulado com o momento histórico. No Deus e o diabo, há todo um quadro de esperanças e de expectativas do qual o filme é uma grande síntese – sem que haja qualquer referência direta ao momento pré-64. Em Terra em transe acontece a mesma coisa.” No Dragão, o quadro é de discussão em torno de um cinema mais próximo do mercado e do público, dado que o filme efetivamente leva em conta, mas ao mesmo tempo há Câncer (1968-1972), filme experimental, sem roteiro, que testa os limites do plano-seqüência. “Os filmes seguintes foram feitos fora do Brasil e isso gerou uma forma diferente de resolver essa tensão. O leão de sete cabeças fala da situação da África, Cabeças cortadas se refere à Espanha, Claro é um diário de bordo feito na Itália em que ele fala de si, de seu cotidiano e do mundo.”

Essa dialética também está presente nos textos. A postura de Glauber em relação ao neo-realismo – que varia da adesão, no fim dos anos 50, às reservas, emitidas quase uma década depois – mostra bem como a tensão entre poético e político aparece na produção crítica. “Ele perde o entusiasmo pelo neo-realismo quando este começa a ser invocado como fator que limite o poético, quando passa a ser um argumento na boca daqueles que defendem um cinema realista de mercado. No contexto brasileiro da época, ele julgava que um cinema nesses moldes não era um avanço.” O mesmo acontece na relação de diretor baiano com figuras de proa do cinema dos anos 60, como Jean-Luc Godard e Pier Paolo Pasolini. “No Vent d’est (1969), Godard convida-o para participar de uma cena, esperando que Glauber diga uma coisa e ele acaba dizendo outra. Ele tinha muito essa maneira de objetor, gostava de exagerar, de polarizar.” Em 1981, em Paris, Glauber deu um depoimento à revista Cahiers du cinéma acusando Pasolini de tratar o sadismo como mito, fetiche, o que seria um “delírio fascista”. “No entanto, quando havia feito A idade da terra, tinha feito questão de homenagear o cineasta italiano, na figura dos quatro Cristos do Terceiro Mundo. Esses episódios poderiam gerar a idéia de alguém incoerente, mas a matriz e as balizas são muito claras. Em relação a Pasolini, essas atitudes conflitantes correspondem a momentos diferentes, vividos em países diferentes. E há outra coisa importante: Glauber tinha vontade de poder, de intervir, de ter peso, de estar em dia com as exigências do momento dentro de uma postura que eu chamaria de realpolitik. Ele fez a realpolitik do cinema novo e assumiu riscos enormes nesse processo.”


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